A dinâmica da vida política nacional desde 2014 esteve pautada por uma suposição-chave: a de que o lulismo caminhava para o ocaso e Lula para o ostracismo.
Tal pressuposto alimentou a estratégia do grande capital, especialmente o financeiro, da direita política, da mídia conservadora conservadora e da elite do Judiciário. Este pressuposto animou-os para o golpe de 2016. Com base nele, moveram a campanha contra Lula nesses anos. Milhares de páginas, bites, memes, tempo de TV e rádio foram despejados sobre a cabeça do ex-presidente. Moveram-se os processos contra ele, a condenação e o golpe final, quando imaginaram que estaria nas cordas: a inelegibilidade. Foi um roteiro minucioso e não um desenrolar acidental.
Imaginando que o lulismo estava em seus estertores, os que patrocinaram e executaram o golpe confiaram que estava aberto o caminho para um novo ciclo, do neoliberalismo mais radical, com estabilidade suficiente para prolongar-se por anos a fio.
Da mesma forma, segmentos da esquerda pautaram sua ação nos últimos anos alicerçados nessa pressuposição. Com o diagnóstico da agonia do lulismo , cabia encontrar alternativas, novos caminhos, novos arranjos partidários e de articulação social. Expoentes dessa visão foram Ciro Gomes, setores do PSOL e mesmo alguns (poucos) líderes do PT.
Pois bem.
Todos esses foram derrotados. A base desta derrota está numa subestimação da relevância de Lula na história do país e de seu povo.
O lulismo está vivo, passa bem e toda a vida política do país gira em torno dele, a partir de uma pequena cela em Curitiba.
Uma das críticas mais persistentes ao lulismo é a de que os governos do PT teriam sido quase um engodo, com sua plataforma de elevação dos níveis de consumo dos mais pobres, no fenômeno que ficou conhecido como a nova classe C a partir do início do governo Lula, que incorporou quase 40 milhões de pessoas à chamada classe média.
À direita, tal feito foi subalternizado, considero um feito “menor” em função do que seria o “grande tema nacional”, o “combate à corrupção”, a partir da virada da primeira década e especialmente depois do início da Lava Jato, em 2014. Para agravar, com a crise econômica aberta em 2015, a direita política e midiática responsabilizaram o PT pela volta desse contingente às camadas D e E.
À esquerda, a crítica assentou-se numa visão segundo a qual a centralidade deste feito nos governos do PT seria uma redução das reformas pretendidas com as eleições de Lula e Dilma ao “consumismo”. Os pobres, não apenas à base da ascensão para a classe C, mas igualmente à custa do Bolsa Família, que beneficiou outros 40 milhões de pessoas, teria sido meramente “seduzidos” pelo consumo sem que os governos petistas cuidassem de sua “formação política”, ao mesmo tempo em que as estruturas partidárias, sindicais e nos movimentos sociais teriam se burocratizado, afastando o PT do povo.
Tanto a direita como setores da esquerda imaginaram que esta massa de cerca de 80 milhões de pessoas no universo total de 207 milhões de habitantes do país, teria “roído a corda” e abandonado o PT. A tese encontrou respaldo nas pesquisas sobre o apoio à Lava Jato e à derrubada de Dilma -ao fim do primeiro semestre de 2016, o índice de apoio à operação liderada por Moro chegou a 80% e ao impeachment a 70% nas pesquisas de opinião, com milhões de pessoas nas ruas contra a presidenta, uma fatia ponderável das classes médias, em especial de seus extratos superiores.
Foi de fato um abalo na relação, mas esteve longe de um rompimento. Os analistas de direita e de esquerda, quase todos dos estratos de classe média alta ou, no caso da direita, boa parte deles dos segmentos mais ricos do país, não entenderam o que Lula afirmou ao longo dos anos. Não se tratava de “consumismo”, mas de dignidade. Não se tratava de “benefício”, mas de direito.
Havia e há um vínculo muito mais profundo e forte entre os mais pobres, os trabalhadores e a nova classe média com Lula, uma identidade e reconhecimento visceral -como tem apontado o cientista social André Singer em seus estudos sobre o lulismo.
Depois do golpe, com o correr dos meses, esta identidade foi retomada à luz do dia. Por um lado, houve uma indignação crescente com as medidas ultraliberais como o fim da CLT, a liquidação da Petrobras, as tentativas malsucedidas de demolir a Previdência Social, o desemprego em massa e as promessas fraudadas de retomada da economia.Por outro, foi ficando patente que a Operação Lava Jato não é um movimento de efetivo combate à corrupção, mas de perseguição a Lula e ao PT. As elites não se deram conta disso mas, quanto mais Moro e os tribunais acirraram sua ofensiva contra Lula, mais ele encontrou solidariedade entre o povo.
Lula, maior que Getúlio
Outra alegação para os que subestimaram a relevância do lulismo foi a afirmação recorrente segundo a qual se Lula fez, Getúlio Vargas fez muito mais. Que as mudanças que Getúlio implementou no país foram muito mais perenes e significativas do ponto de vista do projeto nacional, especialmente pela infraestrutura que permitiu o desenvolvimento industrial do país (Petrobras e CSN) e pela criação da CLT e seu efeito sobre as relações no mundo do trabalho, que perdurou até o governo do golpe de 2016.
Getúlio fez tudo isso e muito mais. Os que alegam que ele tem mais relevo para o país afirmam que ele mexeu nas “profundezas” da nação, enquanto Lula teria se bastado a mudanças que estão sendo todas revertidas pelo golpe, sem deixar as mesmas marcas profundas no Brasil.
É uma visão míope.
Em primeiro lugar, é preciso considerar que Getúlio governou o país por quase 19 anos, mais de dez deles quase com plenos poderes, enquanto Lula foi presidente por oito anos, no contexto de um país infinitamente mais complexo e nos marcos do período mais democrático da história, submetido a todo tipo de pressões e contrapressões. É claro que há o período Dilma, o que completa 13 anos de PT no poder, mas não é preciso levar em conta que não se considera a eleição de Dutra em 1945 como parte do getulismo, nem a de Juscelino, em 1955. É claro que são condições muito distintas, mas a referência é digna de nota.
A relação de Lula com o PT, fundado por ele em 1980 talvez seja mais orgânica do que foi a de Getúlio com o PTB, fundado por ele em 1945 -neste sentido, a figura de Lula agiganta-se ainda mais, porque sua liderança no partido sempre foi mais “negociada” e dialogada que a de Getúlio. Ambos os partidos assentados no movimento sindical, com feições diferentes, de um operariado também muito diferente, com histórias particulares e relações muito diferentes na sociedade e vida política de suas épocas. Mas há algo em comum: o lulismo e o getulismo sempre foram maiores que o PT ou o PTB. Os dois, Getúlio e Lula, líderes carismáticos no exato espírito weberiano, foram -no caso de Lula, ainda é- capazes de relacionar-se com o povo brasileiro ultrapassando qualquer dimensão institucional.
Se Lula teve até agora muito menos tempo que Getúlio, é um equívoco dizer que sua gestão teve menor impacto sobre a infraestrutura do país. Se Getúlio fundou a Petrobras, Lula refundou-a com o pré-sal -com a oposição das elites nacionais. Se Getúlio lançou as bases da indústria brasileira, Lula deu a ela uma dimensão sem precedentes ao tornar o Brasil uma potência exportadora global.
Se Getúlio deixou sua marca na superestrutura nacional, ao criar o Ministério da Educação, Lula promoveu uma revolução no ensino superior, abrindo o as portas da Universidade aos filhos do pobres, depois de décadas de veto. Se Getúlio mudou as relações no país e a cultura nacional ao instituir os sindicatos, voto secreto, o ensino primário obrigatório, o voto feminino, Lula inseriu os pretos e os pobres com as políticas de cotas, mudou a relação das pessoas LGTBs com o Estado e, ao contrário do que se disseminou, em seu governo (e no de Dilma), em vez de acomodação, o movimento sindical brasileiro teve um dos períodos mais vigorosos de mobilização da história -a partir de 2004 o número de greves no país começou a crescer “até atingir a quantidade impressionante – para o Brasil – de 2050 greves em 2013” (leia aqui artigo precioso de Patrícia Valim sobre o lulismo).
Mas há algo que Getúlio jamais sonhou em fazer -nem havia condições concretas para tanto. Lula retirou o Brasil da condição de país subalterno e desimportante na geopolítica e transformou-o num protagonista influente e admirado. A partir do boom das commoditiese das exportações, Lula tornou o Brasil de um país irrelevante no contexto das relações comerciais da China no 9º maior parceiro comercial do país que desponta para assumir a liderança do planeta. Mais que isso: sob sua liderança, o Brasil deixou a sombra dos EUA – veja a seguir trecho antológico e exemplar do discurso de Lula na 4ª Cúpula das Américas em 2005:
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