quinta-feira, 3 de maio de 2018

STF escreve errado a partir de linhas certas


Um velho refrão da sabedoria popular ensina que "Deus escreve certo por linhas tortas". É um pensamento de valor universal. Ajuda a explicar episódios históricos que chegam a um final feliz depois de um enredo de tumultos, erros e desvios que ameaçavam produzir um desastre. 
A própria essencia dos regimes democráticos é uma reprodução das linhas tortas que produzem enredos corretos. Seu cotidiano é uma desordem permanente, em função dos conflitos tremendas e divergências profundas que podem se expressar. Quando se pensa que o sistema vai produzir uma tragédia, a soberania popular encarrega-se de garantir o retorno a normalidade. 
A votação do STF sobre o foro privilegiado para parlamentares é um caso inverso -- linhas corretas que produziram um enredo trágico. Quando escrevo, o placar se encontra em 10 a 0 a favor de criar restrições. Poderia ser motivo de comemoração mas é preocupante.
Ninguém é a favor de regras de proteção a autoridades que sejam um estimulo a impunidade e ajudem a acobertar crimes de toda natureza.   
Mas, em todo país onde vigora um sistema de democracia representativa, é preciso que autoridades eleitas pelo povo, que expressam a soberania popular, desfrutem de uma proteção especial para bem executar seu trabalho. Sem isso, um deputado que for até a porta de uma fábrica defender operários que estão sendo espancados pela polícia corre o risco de apanhar junto sem reclamar. Sei que os casos nem sempre são tão nobres  como este meu exemplo mas você entendeu o espírito de uma lei que deve funcionar para todos.  
Quando se recorda que, no Brasil,  parcelas do aparelho policial, setores da  Receita e do próprio judiciário costumam ser manipulados para atingir alvos políticos, a preocupação em defender representantes do eleitorado é ainda mais justificada. Envolve a proteção de garantias indispensáveis ao regime democrático.
No debate travado no Supremo, surgiram duas propostas. Uma delas, defende que os parlamentares tenham direito a foro privilegiado em função de crimes cometidos durante o mandato. É uma regra objetiva, neutra. Todo mundo sabe quando começa e quando termina o mandato de um parlamentar.
O perigo se encontra na versão seguinte. Nessa opção, o foro especial só pode ser aplicado em duas condições. Quando o crime for cometido durante o mandato e em razão dele. 
A subjetividade reside aqui, em definir o que se faz e o que não se faz "em razão do mandato". Por exemplo: entre a Ação Penal 470 e a Lava Jato, ao longo de dez anos firmou-se a noção de que as verbas de campanha que antes eram consideradas "contribuições eleitorais" e "caixa 2" agora são classificadas como "propinas", ainda que tenham sido contabilizadas formalmente e declaradas ao fisco.
Se você examinar o debate à luz da conjuntura atual, de risco de formação de uma ditadura judicial, o quadro se mostra mais grave e urgente. A ampliação das oportunidades de investigação e punição no interior sistema político, já alvejado por uma das operações mais severas do planeta, só irá contribuir para o enfraquecimento da democracia representativa. É uma janela para a perpetuação da Lava Jato e suas ramificações, que deixa de ser uma investigação para se tornar uma inquisição.
Um detalhe torna o debate ainda mais constrangedor. O projeto em exame coloca em questão, exclusivamente, o foro privilegiado para parlamentares. Isso quer dizer que os juízes brasileiros -- inclusive os 11 integrantes do Supremo -- seguirão usufruindo do Foro Privilegiado de sempre, enquanto os parlamentares entram numa área de maior exposição e risco. Favorável a versão mais branda da mudança, Ricardo Lewandowski disse em plenário que a proposta apoiada pela maioria instituirá "um privilégio dentro do privilégio".
Um aspecto didático: como acontecia no mundo totalitário descrito em 1984, clássico da ficção política de George Orwell, alguns privilegiados são mais privilegiados do que outros.
No caso, os juízes, que não tem votos, passam a dispor de mais garantias do que os parlamentares que, bem ou mal, são eleitos pelo povo.
Pergunta que não quer calar: alguém duvida que o alvo, lá no fim da linha torta, após idas, voltas e descaminhos é punir o voto popular?
Fonte: www.brasil247.com

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