A utopia pode ter eclipsado a realidade, tão cristalinamente clara, de que a democracia e a cidadania social são corpos absolutamente estranhos ao capitalismo brasileiro.
Há menos de cem anos, a sociedade brasileira era majoritariamente formada de uma massa de analfabetos rurais, brancos e negros, submetidos aos resquícios da escravidão e destituídos de direitos elementares, como o direito à própria vida. Não é por outra razão que a natureza da cidadania no Brasil é o avesso de outras experiências nacionais, como a Inglaterra (Marshal, 1967), por exemplo, onde os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais foram consagrados nos séculos 18, 19 e 20, respectivamente.
Aqui, ironicamente, os direitos sociais precederam os demais (Carvalho, 2001), emergindo a partir de 1930 e inaugurando uma longa etapa de “cidadania regulada” (Santos, 1979) pelo Estado patrimonialista que excluía a totalidade das classes subalternas do campo e a esmagadora maioria dos que habitavam as cidades. É nesta perspectiva histórica que se compreende o período 1988-2015 como um ciclo inédito de democracia, ampliação dos espaços públicos e avanços na construção da cidadania social.
Aos trancos e barrancos, abriram-se brechas para que o processo civilizatório avançasse moderadamente. Hoje, está claro que esse foi um ciclo improvável, quase um devaneio, por caminhar na contramão da concorrência capitalista sob a dominância das finanças; por menosprezar as travas do passado; e, sobretudo, por ousar arranhar o status quo social secularmente dominado pelos donos do Brasil.
1. Um ciclo improvável (1988-15)
A regressão da cidadania social, em curso, é o desfecho do longo processo de reação contra as conquistas dos movimentos sociais dos anos de 1970 e 1980. A Constituição de 1988, desaguadouro daquele processo, inaugurou uma etapa inédita de construção da cidadania, desenhando-se um sistema de proteção social inspirado em alguns valores do Estado de Bem-Estar Social: universalidade (em contraposição à focalização); seguridade social (em contraposição ao seguro social); e direito (em contraposição ao assistencialismo). Entretanto, as reações contrárias começaram ainda em 1988. É emblemática, quanto a isso, a tese do “país ingovernável”, esgrimida pelo presidente da República, José Sarney (1985-90) na luta para tentar impedir, a qualquer custo, que a Assembleia Constituinte aprovasse o capítulo sobre a Ordem Social, que foi afinal aprovado.
Assim, foi somente em 1988 que o Brasil incorporou algumas linhas do paradigma aprofundado por muitos países capitalistas centrais a partir de meados do século passado. Quando o fez, aquele paradigma já estava na contramão do movimento do capitalismo sob a dominação das finanças e da hegemonia da doutrina neoliberal em escala global. A redemocratização do país e as reformas da proteção social coincidiram com o esgotamento do “Estado Nacional Desenvolvimentista”.
A crise internacional de 1982 ampliou a vulnerabilidade externa, o endividamento e as pressões inflacionárias. Colocado no epicentro da crise, o Estado perdeu o comando da política macroeconômica e da iniciativa do crescimento. Este cenário foi agravado a partir de 1990, quando se forma no Brasil “o grande consenso favorável às políticas de ajuste e às reformas propugnadas pelo Consenso de Washington” (Fiori, 1993). No campo econômico, houve opção ‘passiva’ pelo modelo liberal. As elites dirigentes foram conquistadas pela convicção de que “não há outro caminho possível”.
As bases materiais e financeiras do Estado foram destruídas em consequência das privatizações, do baixo crescimento, dos juros elevados e do endividamento crescente. A abrupta abertura financeira e comercial expôs a indústria à competição desigual que provocou internacionalização e destruição das cadeias produtivas de setores estratégicos.
No campo da cidadania social, a Constituição de 1988 era incompatível com o Estado Mínimo. A contrarreforma exigia que fosse eliminado daquele documento o capítulo sobre a “Ordem Social”. O ideário liberal passou a ser defendido por especialistas brasileiros que detinham vínculos estreitos com as agências internacionais. Para essa corrente, enfrentar a questão social estaria exclusivamente em programas condicionados de transferência de renda para os “pobres”.
Neste cenário, entre 1990-2014, a proteção social brasileira passou a viver as tensões entre paradigmas antagônicos (Estado Mínimo versus Estado Social), apresentando singularidades em cinco momentos:
– A contrarreforma truncada (1990-94);
– retomada da contrarreforma liberalizante (1995-2002);
– O continuísmo econômico e social (2003-06);
– Crescimento e inclusão social (2007-10); e,
– O recrudescimento das tensões (2011-14).
Para análises desses subperíodos veja o artigo completo aqui.
2. O fim de um ciclo improvável: notas sobre o período 2016-18
O período 2016-18 pode representar o fim do mencionado ciclo de construção da cidadania social (1988-15). A radicalização do projeto liberal, derrotado nas últimas quatro eleições, caminha no sentido de levar ao extremo a reforma do Estado iniciada nos anos de 1990. O objetivo é “privatizar tudo o que for possível”, tanto na infraestrutura econômica quanto na infraestrutura social. Na gestão macroeconômica há o reforço das políticas de “austeridade” e o aprofundamento da arquitetura institucional consubstanciada no “tripé”. Diversas medidas tramitam no Congresso Nacional com esse objetivo (a autonomia jurídica para o Banco Central e a criação de uma Autoridade Fiscal Independente, por exemplo).
Políticas de “austeridade” geram recessão, o que debilita as receitas governamentais e torna o ajuste fiscal um processo sem fim. O único propósito é “colocar a inflação no centro da meta” pelo desaquecimento da demanda. Taxa real de juro elevada (na contramão da experiência internacional), corte de investimentos e gastos sociais, desemprego e rebaixamento da renda do trabalho são funcionais para esse objetivo. Essa opção colocou o país, que não estava em crise severa em 2014, numa grave recessão, com dois anos seguidos (2015-16) de queda da atividade econômica em torno de 3,5% do PIB.
A recessão também é funcional para justificar a implantação do Estado Mínimo liberal, pois “não há alternativa” a não ser o corte de gastos “obrigatórios” das políticas sociais universais consagradas na “Ordem Social” da Constituição da República. A tese ideológica do “país ingovernável”, esgrimida em 1988, voltou a ditar o rumo do debate imposto pelos representantes do mercado.
Agora, eles obtiveram êxito no serviço de criar o “consenso” de que estabilizar a dinâmica da dívida pública requereria modificar o “contrato social da redemocratização”. Para essa corrente, a crise fiscal decorreria da trajetória “insustentável” de aumento dos gastos sociais desde 1993, por conta da Carta de 1988. Também argumentam que os juros elevados praticados no Brasil decorrem da “baixa poupança” do governo, fruto de “sociedades que provêm Estado de Bem-Estar social generoso com diversos mecanismos públicos de mitigação de riscos”.
O processo de destruição do Estado Social está sendo encenado em seis atos principais: Ampliação da desvinculação constitucional de recursos das políticas sociais;
– O “Novo Regime Fiscal”;
– O Fim de vinculações de recursos para a área social;
– Reforma da Previdência Social;
– Reforma Tributária; e,
– Retrocesso nos direitos trabalhistas e sindicais.
Para análises desses seis atos principais veja o artigo completo aqui.
Notas finais
Mais uma vez as ditas ‘elites’ brasileiras atravancam o avanço do Brasil e dos brasileiros na direção de, afinal, ‘experimentar-se’ como nação soberana. O período 2016-18 pode representar o fim de um breve ciclo improvável de restauração democrática e da construção embrionária da cidadania social no Brasil. Caíram as máscaras; em meio século, o Brasil não mudou; e o arcaico voltou a dar as caras sem pudor, desta vez como sócio menor de uma coalizão política, financeira e empresarial que, ao perder as eleições, resolveu assumir o controle do governo pela via do golpe. A utopia pode ter eclipsado a realidade, tão cristalinamente clara, de que a democracia e a cidadania social são corpos absolutamente estranhos ao capitalismo brasileiro.
O pêndulo caminhou para a direita e não deve regressar tão cedo. A autocrítica é necessária, mas haverá muito tempo para autocríticas, adiante. A tarefa urgente é resistir de todas as formas, para frear o rolo compressor dos retrocessos, que deverá ser intensificado até 2018.
Caso contrário, o aprofundamento da arquitetura institucional da “financeirização”, em curso, fechará vias à frente e impedirá a realização de quaisquer projetos de transformação no futuro. A reciclagem da esquerda também requer que ela formule um projeto nacional e popular, cuja cláusula pétrea seja o enfrentamento das diversas faces da crônica desigualdade social brasileira, o que requer a reforma política, o redirecionamento da macroeconomia, a democratização da comunicação e o reforço do papel do Estado.
Também será necessário olhar e compreender a realidade, pois, aparentemente, a “superação definitiva do capitalismo” não está no radar dos negros e pobres da periferia, mais interessados na “teologia da prosperidade” com a graça de Deus. Enfrentar esses temas e remover essas barreiras não será trivial, pela força do poder econômico e pelas travas do passado. Mas também não será trivial sem a unificação da esquerda, que, até agora, parece ser utopia irrealizável.
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Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) e coordenador da rede Plataforma Política Social.
Fonte: Brasil Debate
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