Relatos apontam a conturbada relação entre os irmãos Neves e a imprensa mineira, marcada por denúncias de censura, manipulação e perseguição a jornalistas.
Por Victor de Paula*, no Portal Vice Brasil
O "gostou da pauta, Andrea?" virou uma espécie de "já acabou, Jéssica" da crise política brasileira em 2017— pelo menos entre os jornalistas mineiros. O vídeo expôs uma certa satisfação dos profissionais da categoria em Minas Gerais com a pergunta irônica gritada por uma repórter na chegada de Andrea Neves ao Instituto Médico Legal (IML), logo após sua prisão na última quinta-feira (18). O vídeo viralizou. Na internet, jornalistas reagiram com entusiasmo às notícias sobre Andrea e seu irmão, o senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG), que foi governador de Minas entre 2003 e 2010. Nas ruas, além da ampla adesão ao ato que pediu a saída do presidente Michel Temer (PMDB), os profissionais celebraram o "Dia da Liberdade de Imprensa em Minas", também na quinta-feira, numa festa na sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG), no Centro de Belo Horizonte. Muitas gente, no entanto, não entendeu os memes, se perguntando: "por que os jornalistas de Minas detestam Andrea e Aécio Neves?".
Esta história tem início por volta de 2003, quando circularam na rede mundial de computadores as primeiras denúncias de que Aécio atuava, por meio de Andrea, para barrar ou manipular notícias negativas a ele e ao governo. Os relatos davam conta de que a "Rainha de Copas" (como Andrea é chamada nas redações) pressionava jornais, sites, emissoras de rádio e TV, mandando "cortar cabeças", o que teria resultado numa série de demissões em 2003 e 2004. Presidente do SJPMG, Kerison Lopes explica que o deleite dos jornalistas diante da prisão de Andrea foi uma reação espontânea às denúncias que marcam a relação entre os irmãos Neves e a imprensa mineira. "Os jornalistas sentiram-se de certa forma aliviados e vingados por tudo o que a Andrea fez contra a nossa profissão no período em que ela esteve à frente da comunicação dos governos tucanos em Minas, quando praticou muita censura e perseguição. Nós não comemoramos a prisão de ninguém. Só a consideramos um marco na liberdade de imprensa em Minas", afirma.
O assunto veio a público também em 2006, com o documentário "Liberdade, Essa Palavra", que traz depoimentos de jornalistas denunciando mandos e desmandos de Andrea Neves nas redações. Dirigido pelo então estudante Marcelo Baêta, o vídeo relata demissões como a do jornalista Marco Nascimento, que dirigiu a sucursal da TV Globo em Belo Horizonte. Nascimento conta que Andrea Neves teria dito, num almoço com ele, que uma reportagem sobre o consumo de crack nas ruas do centro de BH, transmitida pelo Jornal Nacional, tinha sido "inoportuna", "vindo num momento ruim para o governo do Estado". "A partir daí, toda e qualquer notícia que pudesse contrariar o governo era contestada. A decisão da TV Globo foi de não ceder e contava, eu imaginava, com o apoio da direção de jornalismo do Rio de Janeiro", conta o jornalista, que foi surpreendido quando a direção nacional da emissora comunicou sua demissão, dias depois.
De acordo com Kerison Lopes, a censura praticada por Andrea Neves se deu por partes. "No início do governo Aécio, em 2003, houve muitas demissões e uma censura direta, incisiva. Depois, os jornalistas foram se adaptando, criando uma espécie de autocensura. Ninguém pensava em fazer uma matéria contra o Aécio, porque sabia que não ia sair e que perderia o emprego. Mas havia um tráfico de reportagens. Os jornalistas de Minas que tinham pautas que sabiam que não iriam sair nos jornais daqui passavam para colegas de veículos de outros estados", conta o presidente do Sindicato.
Censura e perseguição
Em 2010, quando Aécio foi eleito senador e Antonio Anastasia (PSDB-MG) governador, a jornalista Isabela Maria (pseudônimo), trabalhou como repórter no impresso O Tempo e percebeu a autocensura nas coberturas. "Os jornais de Minas, por pagarem muito mal e terem alta rotatividade de pessoal, acabam tendo muitos 'focas' (jornalista recém-formados). Então, essa coisa da autocensura é forte. Não vou jogar os holofotes em mim e perder o emprego que acabei de conseguir", relembra. "E o Aécio sabia bem quem era o jornalista, de qual veículo, em que status estava a situação dele com os empresários desse ramo. Quando alguém fazia uma pergunta fora do script, a resposta era acintosa. Ele olhava para o crachá, para a cara da pessoa. 'Isabela, né? De qual jornal? Olha, Isabela..'. Meio passivo-agressivo. Cínico, mas dando o recado: 'Te reparei, sei seu nome e seu jornal'. Presenciei essa reação dele várias vezes durante a campanha."
O jornalista Nelson Costa, também identificado por pseudônimo, conhece bem a situação. "Fui repórter de política no jornal O Tempo entre 2003 e 2006. Certa vez, iam inaugurar a iluminação de Natal da Praça da Liberdade e o Aécio daria uma coletiva. Me ligaram da redação dizendo que o Vittorio Medioli (dono de O Tempo e atual prefeito de Betim pelo PHS) estava com o prefixo de um avião do governo de Minas que teria tinha sido usado para transportar políticos do PSDB. Me falaram para perguntar ao Aécio se isso não caracterizava uso de dinheiro público para fins partidários. E foi muito atípico, porque realmente ninguém o confrontava. Ele ficou surpreso, gaguejou e negou que o avião tivesse sido usado com interesses partidários", relembra.
"Quando cheguei na redação, o Medioli estava lá, pessoalmente, tratando da edição. Uma situação totalmente atípica. Ele fez o título. Ia ser a manchete. Mas, no outro dia, quando vejo o jornal, não tinha saído nada. Nenhuma linha", afirma, lembrando que, nos corredores, os colegas apostavam no dedo de Andrea. "Em 2010, quando trabalhei no jornal Hoje em Dia, ela foi à redação discutir pautas com a secretaria. O pessoal sempre falava que ela ligava, mas nesse dia eu a vi. Foi logo antes das eleições. A redação ficou tensa quando ela entrou", diz Costa. Isabela lembra que, também em 2010, o comitê das campanhas de Aécio e Anastasia foi montado nas dependências do prédio de onde funciona a TV Alterosa, também dos Diários Associados, grupo que engloba os jornais Estado de Minas e Correio Braziliense.
Ainda em 2010, o jornalista Lucas Figueiredo, ex-repórter do Estado de Minas, publicou em seu blog um perfil sobre Andrea Neves que elucidava a atuação da irmã de Aécio junto ao governo do Estado e à imprensa. "Formalmente, Andrea era apenas a presidente do Serviço Voluntário de Assistência Social. Na prática, comandava com mãos de ferro o núcleo de comunicação. Enquanto à luz dos holofotes Aécio esbanjava charme, simpatia e leveza, Andrea era, nos bastidores, a general de campo de sangrentas batalhas", diz o texto. "Avessa ao flash dos fotógrafos e à badalação, ela trabalha em proveito do sucesso de Aécio desde a hora em que levanta até a hora de dormir (costuma disparar ordens, por e-mail, depois da meia-noite). Os adversários invejam sua capacidade de trabalho e a temem; os aliados se jactam por tê-la a seu lado e também a temem. Os jornalistas apenas a temem."
Prisão e presidência
Em 2014, quando Aécio perdeu o pleito à presidência para Dilma Rousseff (PT), estourou um dos casos mais sombrios e violentos da relação entre os Neves e a imprensa de Minas. Criador do site Novojornal, que vinha publicando denúncias contra Aécio e o governo do Estado, o jornalista Marco Aurélio Carone foi preso e acusado pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) de cometer crimes contra a honra de autoridades do Estado. O jornalista Geraldo Elísio, que também trabalhava no Novojornal, sofreu busca e apreensão em sua residência, tendo computador e outros pertences confiscados.
Elísio conta que a perseguição começou em 2013, quando a redação do site foi invadida pela polícia, que cumpria mandado de busca e apreensão. "Estava o Coronel Praxedes, da Polícia Militar de Minas Gerais, acompanhado da promotora Vanessa Fusco, do MPE, e de um batalhão de soldados fortemente armados. Eu não entendi nada", relembra. "Quando cheguei em casa, vi que a página do Novojornal tinha sido tirada do ar. Ela voltou uma semana depois e começamos a trabalhar novamente. Chegavam cada vez mais denúncias e as visitas dos internautas aumentavam. Fomos em frente", diz o jornalista, hoje aos 75 anos.
Sete meses depois que havia deixado o Novojornal, Elísio tomou mais um susto. "Em 2014, ocorreu a prisão do Marco Aurélio e, simultaneamente, a invasão da minha casa, com uma ordem judicial para apreender o que fosse necessário para desmantelar uma fantasiosa quadrilha de crimes cibernéticos que teria o Marco Aurélio como relações públicas e eu como mentor", relata. "Imediatamente depois que a polícia saiu da minha casa, fui à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais oferecer publicamente ao MP a quebra dos meus sigilos fiscal, bancário e telefônico. E desafiei Andrea e Aécio Neves para que fizessem o mesmo, diante das notícias escandalosas que corriam contra eles na época, envolvendo contrabando de órgãos e ligações com o tráfico de drogas. Não fui sequer indiciado, muito menos processado", completa Elísio. "O Marco Aurélio ficou nove meses preso, sem culpa formada. Chegou a sofrer um infarto na cadeia. Por fim, não aceitaram nenhuma das acusações contra ele, que foi declarado inocente e solto cinco dias depois da eleição de Dilma. Mas, assim como eu, não recebeu os equipamentos apreendidos de volta."
O jornalista afirma que reagiu à prisão de Andrea Neves com "a sensação de dever cumprido e a alegria de provar, ainda em vida", que o Novojornal dizia a verdade. "Muita gente, mesmo sabendo da prisão do Marco Aurélio e da invasão da minha casa, ainda custava a acreditar que aquilo fosse verdade. Porque vivíamos, até então, numa democracia plena. 'Como eu não fiquei sabendo?', muitos argumentavam. Ora, porque os meios de comunicação ignoraram propositalmente a notícia. Não ignoraram, por exemplo, as acusações falsas levantadas contra nós", pontua o jornalista. "Me considero um perseguido político. Fui o primeiro jornalista empastelado, em Minas Gerais, na era digital".
Outros episódios no ano da disputa pela presidência apontavam que os Neves ainda interferiam na imprensa mineira. "Nos últimos meses do PSDB à frente do governo do Estado, ou seja, ainda sob poderio da Andrea, houve uma cobertura escandalosamente tendenciosa dos jornais de Minas, principalmente do Hoje em Dia, claramente manipulando informações para privilegiar o Aécio", afirma Kerison Lopes. Na acalorada reta final das eleições, o suporte de jornais como o Estado de Minas à candidatura de Aécio tornou-se explícito. Diretor-executivo dos Diários Associados, Geraldo Teixeira da Costa, o Zeca, passou a apoiar de forma pública e veemente o então candidato à presidência, subindo em palanques e gravando vídeos em apoio. "Acabo de voltar do comício de Aécio Neves. Foi um discurso histórico, de estadista, de gente grande, que pensa no país. Estou convicto de que ele vai ganhar as eleições", disse Zeca em sua página no Facebook.
Durante a corrida presidencial, a revista piauí publicou um detalhado perfil de Aécio Neves, assinado por Malu Delgado. No texto, ele comentava publicamente as acusações de censura e perseguição a jornalistas. "O tema tira Aécio de seu habitual bom humor. Ao comentar o assunto, foi um dos raros momentos em que ele elevou o tom de voz. 'Desde que eu nasci eu ouço essa história de que a imprensa mineira é complacente. Isso é dito principalmente por quem não lê a imprensa mineira', disse. 'Os mineiros também são críticos e censura é uma lenda urbana', prosseguiu, passando a analisar o comportamento dos três principais jornais do estado: 'O Tempo me critica mais que a imprensa nacional; o Hoje em Dia nem conta porque é menorzinho; e o Estado de Minas sempre teve posição pró-governo pelo seu tipo de jornalismo, que não é um jornalismo de questionamento'", afirma um dos trechos. "Nunca liguei para diretor de jornal para criticar jornalista, quanto mais para pedir demissão. Eu posso até ligar para o jornalista e dizer: 'Olha, está errada essa tua informação'. Isso eu faço. Mas ligar porque o cara publicou algo contra mim? Zero", afirma Aécio.
O texto conta, ainda, que Andrea Neves considera que "a intriga da censura é o único discurso que a oposição encontrou para macular a imagem de Aécio", declarou a irmã de Aécio à revista. "Quando conversamos, ela me adiantou que não falaria sobre esse tema — já havia acumulado um desgaste pessoal excessivo, tantas eram as informações infundadas", diz o trecho. Há, ainda, uma fala de Vittorio Medioli sobre a condução do jornalismo de O Tempo, desmentida pelos jornalistas ouvidos em anonimato para esta reportagem. "Medioli me disse que seu jornal atua com independência e critica todas as esferas de governo. 'Aécio Neves se mostrou várias vezes incomodado, mas não mudamos nossa atitude'".
Prisão
Acusada de operar as negociatas escusas de Aécio, Andrea Neves foi presa preventivamente por determinação do ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, relator da Lava Jato. Por conta da repercussão do caso , ela foi encarcerada em ala separada do pavilhão principal do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte. Como as outras presas, Andrea terá direito a alimentações diárias, banho de sol, assistências médica e psicossocial, além de poder receber visitas. Fachin negou o pedido de prisão preventiva de Aécio, mas determinou seu afastamento do Senado. Também foram presos Frederico Pacheco de Medeiros, primo de Aécio, e Mendherson Souza Lima, assessor do senador Zezé Perrella (PMDB-MG).
Segundo a Polícia Federal (PF), os R$ 2 milhões pedidos por Aécio ao dono da JBS, Joesley Batista, foram depositados na conta da empresa Tapera Participações Empreendimentos Agropecuários, do ex-deputado estadual Gustavo Perrella (SD), filho do senador Zezé Perrella (PMDB-MG). Em 2013, um helicóptero de outra empresa de Gustavo, a Limeira Agropecuária, foi apreendido pela PF com 445 kg de cocaína ao posar numa fazenda no interior do Espírito Santo. Poucas horas antes da apreensão, o helicóptero teria parado para abastecer perto da pista de Cláudio, que pertence à família Neves. O aeroporto foi construído pelo governo de Minas na gestão de Aécio, com custo de R$ 14 milhões, num município de 25 mil habitantes.
*Jornalista
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