Enquanto a reforma da Previdência não alça voo, o governo inverteu a estratégia no seu projeto de punir o trabalho. O Congresso aprovou, na quarta-feira 22, a terceirização irrestrita do trabalho no Brasil, o que inclui a chamada atividade-fim, essência de qualquer empresa.
A pedido do Palácio do Planalto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi buscar um Projeto de Lei de 1998, o PL 4302, elaborado ainda na gestão Fernando Henrique Cardoso e que estava parado há mais de uma década no Congresso, para colocar em votação.
Isso porque a outra proposta sobre terceirização, que havia sido aprovada em 2015 na Câmara, estava travada no Senado. Como o PL 4302 já tinha passado pelas duas Casas, bastou uma nova votação para que a proposta pudesse ser encaminhada para sanção presidencial.
A maioria dos líderes partidários não queria enfrentar o tema novamente, por causa do ônus político. No entanto, graças ao denodado empenho de Maia, o governo conseguiu acordo para o tema entrar na pauta. O placar relativamente apertado revela as dificuldades criadas pelo tema controverso: 231 votos a favor e 188 contra.
A terceirização vem para complicar ainda mais a vida de um país que pela primeira vez, desde 2004, vê seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) estagnar. O resultado do indicador precede uma nova virada na história brasileira, consolidada com a agenda Temer: a volta da visão tradicional que identifica apenas o PIB como parâmetro de crescimento e não o desenvolvimento humano. Mas esta não é preocupação para a quadrilha golpista. O retorno à escravidão é o objetivo.
Apesar de os resultados do IDH se referirem ao ano de 2015, quando a ex-presidenta Dilma Rousseff ainda estava à frente do governo, o que explica o mau desempenho do Brasil é exatamente a mesma lógica que se perpetua desde o impeachment: o arrocho fiscal.
Foi naquele ano que o ex-ministro Joaquim Levy introduziu um forte contingenciamento de recursos e reduziu a figura do Estado como indutor da economia. O número de desempregados passou de 7,2 milhões para 10 milhões, crescimento de quase 40%.
E é na renda, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que está a explicação para a deterioração do IDH e da qualidade de vida. O Pnud avalia dados de três áreas para calcular o desenvolvimento humano de uma nação: saúde, conhecimento e padrão de vida.
Os dois primeiros seguem registrando melhoras em seus indicadores no Brasil, mas o último tem como principal fator a Renda Nacional Bruta (RNB), que registrou queda abrupta em 2015, voltando a um patamar similar ao de 2010.
Com isso, o Brasil está paralisado na posição de 79º no ranking, com IDH de 0,745, mesmo patamar do ano anterior, 2014. Dos 188 países avaliados, ficamos ao lado de um pequeno grupo de 16 nações que também não conseguiram elevar o IDH – Equador, Iraque, Irã, Afeganistão e Líbano são alguns dos exemplos mais expressivos.
“É uma luz amarela, um alerta, algo para se olhar com atenção para saber o que precisa ser feito”, explica a coordenadora do Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional do Pnud, Andréa Bolzon. Enquanto 159 países conseguiam aumentar seu Índice de Desenvolvimento Humano, apenas 13 registraram queda. Muitos vivem, porém, situações de luta intestina, como Ucrânia e Líbia, o que ajuda a explicar o resultado.
O desempenho brasileiro só não foi pior, esclarece a equipe do Pnud, por causa da rede de proteção social construída nos últimos anos. Foram programas de governo que ajudaram a segurar os índices de escolaridade e expectativa de vida, que também compõem o valor do IDH. “Não podemos nos gabar de ter um excelente piso de proteção social, mas temos um piso. Isso explica o fato de não estarmos em situação pior. A questão agora é não retroceder mais”, enfatiza Andréa.
O certo é que a recessão econômica e o desemprego já começaram a aprofundar a desigualdade. Segundo cálculos da FGV Social, Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, o Índice de Gini registrou em 2016, pela primeira vez depois de 22 anos, aumento de desigualdade no País. Esse índice varia de zero a 1, considerando que, quanto mais perto de zero, menor é a desigualdade numa sociedade avaliada. No Brasil, esse valor alcançou 0,5229 em 2016, aumento de 1,6% em relação a 2015.
Umas das explicações para esse resultado é o congelamento do valor do Bolsa Família, que ficou dois anos sem correção, enquanto a inflação atingia dois dígitos, ainda durante o governo Dilma. “Até o fim de 2016, o dado de aumento da desigualdade não dá qualquer sinal de arrefecimento”, afirma Marcelo Neri, diretor da FGV Social e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Na recessão de 1999, foi discutido o Bolsa Escola. Na recessão de 2003, gerou-se o Bolsa Família. São recessões em que se mostrava preocupação com os mais pobres. O Brasil manteve o Bolsa Família congelado por quase dois anos, 3,6 milhões de pessoas entraram na pobreza em 2015. Isso reflete esse desajuste nesta crise, esse desaprendizado de cuidar dos pobres. Não é só uma questão de justiça social, a recessão tende a ser mais dura também quando não há preocupação com os mais pobres.”
É por isso que esse quadro tende a piorar ainda mais com as reformas do governo Temer, segundo especialistas ouvidos por CartaCapital. O peemedebista reajustou o valor do programa de transferência de renda em 12,5% assim que assumiu o Palácio do Planalto.
Depois aprovou, contudo, o congelamento dos gastos primários por 20 anos, a chamada PEC 55, que deve afetar justamente a transferência de renda e áreas cruciais para o desenvolvimento humano, como saúde e educação.
No caso de programas como o Bolsa Família, que oferece auxílio às gestantes e controla a presença de crianças na escola, o Brasil corre o risco de ter dados sociais importantes afetados. “Estagnou o crescimento das famílias do Bolsa Família, deu até uma caída.
Se esse movimento for se mantendo, é possível que os indicadores de saúde e educação se alterem. Se você começa um processo pelo qual não ingressam mais pessoas no programa e você não mexe no valor do benefício, ele vai se extinguindo naturalmente”, alerta o coordenador de relações sindicais do Dieese, Fausto Augusto Júnior.
O congelamento de gastos públicos é um dos principais eixos da política econômica do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que bateu duro para que o texto fosse aprovado no Congresso.
O Dieese apresentou um estudo no ano passado mostrando que, se a PEC 55 estivesse valendo, entre 2006 e 2015, o montante aplicado na educação, seria 55% menor do que foi de fato. Já em relação às despesas com saúde, a redução seria de 33% no mesmo período. Do ponto de vista do total de recursos, a perda na educação teria sido de 384 bilhões de reais e, na saúde, de 290 bilhões.
A própria ONU chegou a se manifestar sobre esses pontos. Em entrevista a CartaCapital em dezembro, o relator especial da Organização das Nações Unidas para a Pobreza Extrema e os Direitos Humanos, Philip Alston, foi enfático. “Nos próximos 20 anos, o governo vai gastar com políticas sociais muito menos do que gasta hoje. Isso significa que a futura geração estará condenada.”
Há ainda outro importante projeto do governo que pode jogar para baixo os dados sociais brasileiros: a reforma da Previdência. Mesmo evitando críticas diretas ao governo, já que a proposta ainda está em tramitação, a equipe do Pnud no Brasil apontou os trechos presentes no texto que podem criar vulnerabilidade social. Andréa Bolzon destacou, principalmente, o endurecimento das regras de acesso à aposentadoria para os trabalhadores rurais, o que classificou como “injustiça”.
Na quarta-feira 22, poucos deputados fizeram uma defesa enfática da terceirização. Coube à oposição criticar o texto. Os parlamentares sabem que a terceirização é uma demanda do empresariado e não dos trabalhadores. A proposta é vista pela equipe econômica como forma de diminuir as taxas de desemprego.
Não se sabe ainda se, de fato, isso vai fazer diferença na oferta de postos de trabalho, mas os estudos indicam que a terceirização precariza, sim, as condições de trabalho. Com dados de 2013, técnicos do Dieese mostraram que os terceirizados recebem salários 24,7% menores do que aqueles dos efetivos e permanecem no emprego pela metade do tempo, além de ter jornadas maiores. Menos renda e menos direitos para os mais vulneráveis.
Fonte: Carta Capital
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