Maquiavel o ensinara com ênfase e a História está cheia de exemplos de que quem chega ao poder pela força (pelas mãos) de outro líder tende ao fracasso. Existem inúmeros exemplos que comprovam esta tendência e o último foi o de Dilma Rousseff. Em 2010, após a vitória de Dilma, publiquei um artigo (Estadão 09/11/2010), chamando a atenção para esta tendência e indicando que o principal problema da presidente-eleita seria de ordem política. No final do artigo fiz uma advertência que depois soou quase profética: o principal risco que ela deveria evitar era um processo de impeachment, pois "presidentes com escassa força política própria são sempre suscetíveis de enfrentar investidas seja de forças da oposição, seja até mesmo de forças aliadas, desejosas de mais espaço e poder". Mas a total falta de prudência do governo e do PT impediu que esta variável estivesse presente de forma permanente no cálculo político.
Fernando Haddad tem alguns problemas semelhantes aos de Dilma e algumas vantagens. A probabilidade é a de que ele irá para o segundo turno, com razoável chance de ser eleito presidente, devido a força eleitoral e política de Lula. Desconhecido do grande eleitorado nacional até o início da campanha, Haddad está sendo impulsionado nas intenções de voto pela tática de transferência de voto sintetizada na consigna de que "Haddad é Lula". Havia outra saída? Aparentemente não, pois a manutenção da candidatura Lula até as últimas consequências foi correta. O que poderia ter sido feito era definir antes a candidatura de Haddad como vice de Lula para projetá-lo por mais tempo.
Haddad tem também outros três desafios que foram enfrentados insatisfatoriamente por Dilma. Na base desses desafios está a condição sine qua non do êxito político: a disponibilidade de força política (ou militar) própria. O primeiro diz respeito ao fato de que Haddad não comanda o PT como Lula o comanda. O segundo é que Haddad não tem uma liderança social própria, o que o impedirá de usá-la no jogo de pressões, ardis, astúcia e chantagem em face de aliados e adversários. O terceiro diz respeito a possibilidade, se for eleito, de não ter maioria no Congresso, pois é improvável que os partidos progressistas elejam essa maioria. Neste caso dependeria de forças auxiliares ou mercenárias, como Dilma dependeu e, em certo sentido, Lula também. Isto limita a ação do governo e do presidente.
Os problemas de Haddad são insolúveis? Não, se tiver consciência deles, se os enfrentar desde já, com muita prudência e coragem, as duas virtude cardeais a atividade política. A primeira questão a ser resolvida é como Haddad se apresentará na campanha. Se for um mero reflexo, uma máscara, um espelho de Lula não contribuirá muito para enfrentar os desafios. Haddad terá que se fazer Haddad, construindo sua personalidade política própria, tornando-se um líder singular. Não se trata de desvincular-se de Lula, seja porque, de fato, Haddad herda o seu imenso capital político, a força da sua liderança, o legado do seu governo. Haddad e o PT têm em relação a Lula o dever de uma lealdade devida. Mas Haddad não poderá passar a ideia de que será o herdeiro que manterá ou dissipará a herança recebida. Terá que dizer e mostrar que a multiplicará, que a inovará, que a fará frutificar.
Haddad terá que projetar a imagem de um inovador, de um líder forte e corajoso, pois a sociedade quer mudança e a mudança, dada a natureza da atual conjuntura, só será proporcionada por líderes inovadores, fortes e corajosos. Sabidamente, Haddad tem pouca capacidade de emocionar, algo que Lula é mestre incomparável. Haddad é visto como um tipo mais frio, professoral, racional. Então terá que explorar essas características como virtudes de um líder que o Brasil precisa neste momento. A partir delas e com elas terá que ter a capacidade de persuadir, convencer, com argumentos convincentes acerca do que irá fazer e de que o que irá fazer é o melhor para o Brasil e para o povo.
O que se quer dizer é que Haddad não pode ser reduzido a um ventríloquo de Lula, pois se for visto assim chegará ao segundo turno como alguém fraco e, se for eleito, será posto a prova a todo momento com testes e confrontações pela oposição. Aqui Haddad leva vantagem em relação à Dilma. O fato de ter sido prefeito e candidato duas vezes à maior e mais importante prefeitura do país atesta que ele não é neófito na arte de comandar e liderar como era a ex-presidente. Espera-se que Haddad tenha extraído duras lições, tanto na vitória e no comando da prefeitura, quanto na derrota de 2016. Na democracia, a derrota é jogo. Lula perdeu duas vezes no primeiro turno para FHC antes de se eleger duas vezes consecutivas.
Para se tornar um líder autêntico, um grande líder capaz de deixar uma marca singular na história do Brasil, Haddad terá que abandonar uma prática que adotou à frente da Prefeitura de São Paulo: terá que deixar de ser um general de gabinete para ser um general de campo. Todos os grandes líderes, nas diferentes épocas históricas - de Alexandre o Grande a Júlio César, de Carlos Magno a Napoleão Bonaparte, de Lincoln a Mao Tsé-Tung, de Roosevelt a Stalin, de Charles De Gaulle a Churchill, de Mandela a Lula, só para citar alguns - foram muito mais generais de campo do que generais de gabinete. Um líder político não é um gestor. A principal qualidade que se exige de um líder é comandar e dirigir pessoas, grupos, classes, massas, multidões, exércitos, povos, nações.
Das esperanças de um Brasil melhor que surgiram com a redemocratização e com a Constituição de 1988 só restam escombros. A Constituição rasgada, direitos vilipendiados, um Judiciário parcial e partidarizado, democratas que apoiaram o golpe, militares pressionado de forma indevida o jogo político, apelos a intervenções militares, tutela judicial-militar sobre a política, retorno de epidemias, desemprego, crescimento da miséria e da pobreza, um país que queima sua história nas labaredas da incompetência e do abandono, um país sem futuro. Fracassamos enquanto nação. Fracassamos enquanto país. A direita, o centro e a esquerda fracassaram. Uns mais outros menos, é verdade, e com imputações morais diferentes. Mas não é possível nos eximirmos da responsabilidade.
O Brasil é carente de heróis e líderes autênticos, de dimensão nacional e popular, em sua história. Os heróis dos povos são importantes, pois são fontes anímicas, forças simbólicas e potências de ação para enfrentar os momentos de tragédias e desesperanças ou para construir a grandeza de um país. Hoje, o maior líder do nosso tempo, um líder autenticamente popular, está preso injustamente. É nesse espaço histórico e político que Haddad se apresenta. Ele terá que medir a sua responsabilidade e a sua missão por três metros: pelas profundezas abissais das nossas tragédias; pela imensidão dos nossos desafios e pela estatura da liderança de Lula.
A Deusa Fortuna está oferecendo a Haddad uma ocasião singular que, talvez, nunca mais se lhe apresente na vida. Ela não quer apenas que Haddad chegue num segundo turno ou vença uma eleição. Ela quer que Haddad, qual um Moisés, conduza o povo pelo deserto, rompa o Mar Vermelho e o leve até uma terra prometida. O primeiro passo consiste em castigar os opressores com a praga da derrota eleitoral. Mas a Deusa só se enamora daqueles que agem com ousadia e coragem, daqueles líderes que lutam com ferocidade e impõem não só respeito, mas temor. Haddad precisa fazer-se temido, como indicou no Jornal Nacional. A política brasileira está transformada numa batalha campal. É preciso coragem e virtù para triunfar.
Fonte:www.brasil247.com
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