A transição do desenvolvimento é uma operação essencialmente política.
Irrealizável , numa chave popular, sem democracia ativa e Estado indutor.
Estão se fechando, mais uma vez, as portas do país ao povo brasileiro.
É disso que nos falam os anúncios que fazem as bolsas subir e os editoriais festejarem.
Falam de cruzar ferrolhos e trancas, erguer tapumes, barreiras, falam de cortes, sacrifícios e retrocessos; falam em alienar e privatizar --'tudo o que for possível'.
Aos que povoam as bordas não será suficiente conter o curso.
Será necessário recuar, adverte-se.
Não há como manter o mínimo disponível ---esse que carece de tão mais.
O equilíbrio do povo é o desequilíbrio da Nação --não há como sustentar a 'gastança', justifica-se.
Por vinte anos não haverá.
Faltarão pratos à fome, leitos aos doentes, novas escolas às crianças, amparo aos idosos, empregos aos pais de família, nova esperança aos jovens.
É isso que a aliança da escória com a mídia e o dinheiro tem a propor para o futuro da oitava maior economia da terra, segundo maior exportador de alimentos do planeta, maior planta industrial do Ocidente em desenvolvimento.
O vento frio de agosto fustiga o Brasil em uma nova esquina histórica.
A tarefa da resistência democrática só terá êxito engatada na repactuação de um novo projeto de desenvolvimento, sintonizado às transformações de um capitalismo global que não gera mais empregos, nem mobilidade social, exceto descendente, engajando assim a classe média em variadas versões de fascismo.
Nunca a coordenação democrática do desenvolvimento foi tão crucial para oferecer soluções públicas ao individualismo desesperado.
Um ciclo se esgotou; outro precisa ser erguido.
É a hora das matilhas: foi assim em 32, em 54, em 64, em 88, em 2002...
A gravidade dessa transição se expressa na ruptura institucional liderada por interesses que deixaram de lado o pejo e a focinheira para impor reformas que alteram o pacto da sociedade, sem consulta-la.
Se o nome disso não é golpe será preciso inventar um outro mais forte.
A usurpação regressiva avança a contrapelo dos ares do mundo.
A supremacia global do neoliberalismo estrebucha.
As notícias chegam à revelia do filtro midiático.
Dão conta de um esgotamento imerso em capacidade excedente, comércio internacional anêmico, ressurgências xenófobas, cinturões de ferrugem e legiões de descartados que já flertam com salvadores da pátria a passo de ganso.
Trump não é um acidente de percurso. É a evidência do perigo iminente.
Há sobras explosivas nos mercados.
Gente, de um lado; e dinheiro especulativo do outro: US$ 13 trilhões apartados do investimento produtivo caçam jugulares para uma transfusão rejuvenescedora.
A siderurgia mundial amarga 47% de ociosidade e isso resume um amplo leque manufatura e construção.
A busca de sangue fresco pode inundar o Brasil --e não há nada mais perigoso do que uma chuva de dólares na vida de uma nação, dizia Celso Furtado.
Promover a combustão do PT e da CLT , e permitir que se dispare o tiro de misericórdia na indústria nacional e nas ferramentas de política pública, disso se alimenta a euforia que pisoteia o país para encaixotá-lo no esquife neoliberal.
Cinquenta e quatro milhões e quinhentos mil votos da Presidenta Dilma ardem nas labaredas dessa fogueira de direitos e privatização de riquezas nacionais, imolados para que os patos gordos da Fiesp continuem a deslizar em lagos e contas suíças -- a salvo de uma justiça tributária que sustente o investimento público, induza a engrenagem privada e afronte os apelos fascistas num arcabouço revigorado de direitos e cidadania expandida.
Lula, Dilma e o PT , a exemplo de Getúlio em 54, subestimaram a necessidade de se ancorar a luta pelo desenvolvimento em uma organização popular da envergadura requerida pelo estirão que interliga a CLT ao pré-as; o Bolsa Família ao BNDES, à Eletrobrás, ao salário mínimo; o Prouni, à soberania, ao conteúdo nacional, ao Mercosul, ao banco dos BRICS, à valorização real de 70% do salário mínimo...
A resposta foi o cerco asfixiante das elites.
Do Catete, Vargas só não saiu deposto porque decidiu entrar para a história conduzindo a alça do próprio caixão. E ali perpetua uma influência ainda inexcedível no imaginário popular.
Torniquete de interesses semelhantes espremeu o ciclo Lula desde do seu início, em 3 de janeiro de 2003, quando anunciou o programa Fome Zero.
A simples menção ao termo maldito foi recebida com a sublevação de uma elite que não queria se ver no espelho de 56 milhões de pobres (33,6% da população então, conforme o Ipea), sendo 24,7 milhões de indigentes e mais de 30 milhões de famintos.
A segunda volta no torniquete veio em 2009, com a regulação soberana das maiores reservas de petróleo descobertas no século XXI.
O pre-sal foi corretamente entendido e direcionado pelo governo como o derradeiro impulso industrializante do país, capaz de dota-lo de um núcleo irradiador da revolução 4.0 em marcha no mundo –a da inteligência artificial e dos robôs-- e assim preservar a geração do excedente capaz de financiar a universalização da cidadania brasileira.
O cerco se estreitaria de forma asfixiante em 2012, já no primeiro mandato da Presidenta Dilma Rousseff.
A senha da vez foi a tentativa de derrubar spreads e juros, com a indução dos bancos estatais, e taxar operações para impedir que o pernoite do dinheiro barato tomado lá fora, rendesse lucros obscenos aos párias aqui dentro.
A busca de um armistício no seu segundo mandato, com a deflagração de um ajuste fiscal equivocado, longe de aplacar aguçou a crise: abriu de vez o flanco ao assalto das matilhas até chegarmos ao golpe de 2016.
Reverter as expectativa de longo prazo dos detentores da riqueza, reconduzir o dinheiro aos trilhos da produção e da expansão de serviços públicos não é tarefa técnica.
Desenvolvimento é transformação, é superar velhas estruturas e criar outras novas, uma audaciosa operação de economia política que não prospera sem um sujeito social que a conduza.
O enredo exige o discernimento engajado de amplas camadas para negociar os conflitos e repactuações do caminho.
Nos governos Lula e Dilma, 30 milhões de brasileiros saíram de pobreza extrema, outros tantos ascenderam na pirâmide de renda.
Formam hoje a maioria da sociedade.
Mas ainda não ainda o sujeito da própria história.
Hoje, como ontem, o leque de forças contrariadas pela vitória esmagadora de Getúlio em 1950 --as de Lula em 2002 e 2006, e as de Dilma, em 2010 e 2014-- preservou intacta a supremacia de sua voz junto à opinião pública.
A rigor, em todo esse período, a ubiquidade conservadora só foi quebrada pela dissonância nacional de uma voz: o jornal Última Hora, no segundo governo Vargas, cuja tiragem chegou a 800 mil exemplares (a Folha, hoje, não vende a metade disso).
A solitária trincheira desapareceu. Mas o cerco persiste ao Catete.
A qualquer Catete que dentro tenha um representante do povo disposto a assumir a tarefa que o mais mítico de todos eles deixou inconclusa.
Porém agendada.
O estampido e a carta testamento de 24 de agosto de 1954 ainda hoje ecoam a esperança em um Brasil desenvolvido, soberano, justo e democrático, uma construção inconclusa, mas não descartada.
A evocação desse repto causa calafrios na alma golpista de todos os tempos – os de ontem e de agora.
A cada estirão de conquistas populares o rebote conservador cuida de prevenir-se, dobrando a altura das muralhas para fustigar intrusos de uma sociedade pensada para 30% da população.
O país de carne e osso não cabe numa equação fiscal que destina 7% do PIB ao pagamento de juros aos rentistas --e enfrenta a sublevação da Fiesp a uma tributação justa e progressiva da riqueza.
A ‘purga’ emerge como fatalidade no monólogo que interdita o debate de uma transição para a qual não existem respostas prontas.
Transição de desenvolvimento é uma operação essencialmente política. Irrealizável , numa chave popular, sem democracia ativa e Estado indutor.
A motivação verdadeira do golpe é justamente impedir essa travessia.
É disso que se trata quando um juiz de segunda instância atropela qualquer escrúpulo para acelerar --em tempo recorde-- os trâmites que visam banir Lula da disputa de 2018.
Se possível, trancando-o atrás de grades para não exercer uma liderança imbatível como cabo eleitoral.
A demolição do Estado que abriga os interesses do povo é a nova locomotiva desse Brasil em marcha à ré.
A mutação consiste em transformar direitos em serviços vendidos a ‘preços populares’, como quer o lobista da medicina privada lotado no ministério da Saúde.
São suspeitos todos os laços que podem induzir a um projeto compartilhado de nação.
Tudo o que não for mercado é corporativismo e gastança.
A exemplo de outras vezes em que ferrolhos e trancas foram mobilizados, será preciso colocar o pé na porta e forçar a dobradiça.
A resposta ao golpe de 2016, com no de 1954, deve ser buscada na superação do flanco que se tornou ostensivo.
O Brasil precisa do engajamento organizado do seu povo.
Mais que a carta de 24 de agosto de 54, é preciso ouvir o recado de Vargas aos trabalhadores reunidos no estádio do Vasco da Gama, no Rio, no 1º de maio daquele mesmo ano.
O povo brasileiro precisa assumir o comando do seu destino -- foi o que disse, em outras palavras, um presidente em cerimônia de adeus.
É em torno desse repto colossal que a resistência ao golpe terá que cerrar fileiras agora.
Foi essa a evocação de Vargas, no discurso ao lado de Jango, três meses e vinte e quatro dias antes de atirar contra o próprio peito para, quem sabe, dar tempo ao povo de cumprir a predestinação abrigada em suas palavras.
Hoje, como ontem, elas mantem sua lancinante atualidade:
"A minha tarefa está terminando e a vossa apenas começa. O que já obtivestes ainda não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos que vos são devidos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades (...) Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituí a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo’ (Vargas, 1º de maio de 1954).
Fonte: www.cartamaior.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário