O historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira explica a desordem planetária produzida pelas intervenções dos Estados Unidos.
Por Sergio Lirio, da Carta Capital
O enciclopédico Moniz Bandeira
Em seu mais recente livro, A Desordem Mundial, o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira analisa as consequências para o resto do planeta das intervenções militares e diplomáticas dos Estados Unidos nas últimas décadas.
Do Oriente Médio à África, sem escapar o Leste Europeu, vicejam as “guerras por procuração, o caos, o terror e as catástrofes humanitárias”, fruto da tentativa fracassada de Washington de estabelecer o domínio completo da terra, mar e ar.
Enciclopédico e bem informado, Moniz Bandeira, na entrevista a seguir, parte da tese central da sua obra para cerzir uma intrincada correlação entre os recentes acontecimentos globais: o impeachment de Dilma Rousseff, a crise das esquerdas na América Latina, a tentativa de golpe na Turquia, o crescente enfrentamento entre a Rússia e o Ocidente. “Os EUA”, conclui o acadêmico, “aspiram instituir uma ditadura mundial do capital financeiro.”
CartaCapital: O senhor vê paralelos entre o golpe de 1964 e o movimento para derrubar a presidenta Dilma Rousseff?
Luiz Alberto Moniz Bandeira: Ambos, na sua essência, foram golpes de Estado. A diferença consistiu na forma. Interesses estrangeiros, aliados a poderosos segmentos do empresariado brasileiro, não mais bateram às portas dos quartéis.
A maioria das Forças Armadas aparentemente não mais se dispõe a intervir nas crises políticas, para mudar o regime, salvo se o poder rolar pelas ruas. Não desejam se desgastar, como ocorreu quando rasgaram a Constituição em 1964.
Por outro lado, os interesses estrangeiros que se aliaram aos setores empresariais do Brasil temeram o fracasso dos experimentos anteriores com os militares (nem sempre nem todos se submeteram aos desígnios antinacionais).
Durante muito tempo uma parte da intelectualidade acreditou que o Brasil estava imune a golpes parlamentares-judiciais como aqueles ocorridos em Honduras e Paraguai. O processo do impeachment encontrou, porém, pouquíssima resistência na sociedade e nos poderes constituídos. Por quê?
Vários foram os fatores. Dilma Rousseff é uma mulher digna e honesta. Mas, desde que assumiu o governo, cometeu diversos erros, sobretudo de política econômica e, também, no segundo mandato. O real ficou muito sobrevalorizado em uma conjuntura internacional bastante adversa ao crescimento do País, em razão da queda da cotação das commodities no mercado mundial.
Por sua vez, o PT igualou-se aos partidos das classes dirigentes. Imiscuiu-se com o PMDB, uma aliança espúria, e grande parte de seus quadros deixou-se corromper, abandonou os valores que defendia e perdeu a ética e sua autenticidade como partido de esquerda.
As mazelas, ao virem à tona, permitiram à mídia corporativa empreender uma facciosa campanha para destruí-lo e também bloquear o regresso ao governo do ex-presidente Lula, cuja popularidade não se esvaíra. A campanha foi impulsada por interesses estrangeiros contrariados.
A elite financeira internacional e setores do empresariado brasileiro influenciaram, por meio da mídia corporativa, vastas porções das classes médias preconceituosas, que jamais aceitaram um metalúrgico nordestino como presidente da República. Houve uma luta de classes, deflagrada de cima para baixo, pelos endinheirados.
A força-tarefa da Operação Lava Jato nega ter um viés político-ideológico, afirma investigar a corrupção “doa a quem doer” e costuma se comparar à Mãos Limpas italiana. O senhor concorda?
Salta aos olhos o fato de o ex-presidente Lula, com a cumplicidade da mídia corporativa, sempre ser tratado nos aspectos legais de modo diverso dos outros citados na tal Operação Lava Jato.
O grampeamento e o vazamento de sua conversa com a então presidenta Dilma Rousseff constituiu grave ilícito penal e nenhuma punição foi dada ao juiz e aos policiais que executaram o monitoramento. Esses e outros feitos da força-tarefa tiveram e têm o propósito de estabelecer a presunção de que Lula é culpado de corrupção. Nenhuma prova consistente foi apresentada.
O que importa, porém, não é a prova, não é a lei, mas a “convicção” do juiz. A Lava Jato configura uma guerra jurídica, assimétrica, mediante o uso ilegítimo da Justiça, a manipulação da lei e de processos judiciais, com fins políticos e militares, uma lawfare, conforme conceito desenvolvido pelo coronel da Força Aérea dos Estados Unidos Charles J. Dunlap Jr., no ensaio Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in 21st Conflicts, apresentado na Duke Law School em 2001.
Motivos havia para a deflagração de uma lawfare contra o governo do Brasil. Washington jamais admitiu oposição ou discrepância com a sua política internacional. A partir de 2003, sob a Presidência de Lula e, depois, de Dilma Rousseff, o Brasil frustrou a implantação da Alca e compôs o grupo denominado BRICS, que busca romper a hegemonia do dólar.
Ademais, o Brasil comprou aviões da Suécia e não da Boeing, helicópteros da Rússia, tratou de construir o submarino nuclear e outros convencionais com tecnologia da França, continuou a expandir a produção de urânio enriquecido para suas usinas nucleares, não entregou a exploração do petróleo no pré-sal à Chevron e outras corporações dos Estados Unidos, avançou nos mercados da América do Sul e da África.
O juiz Sergio Moro e o procurador-geral, Rodrigo Janot, atacam o Brasil por dentro de suas entranhas ao destruir as grandes empresas nacionais, privadas e públicas, que concorrem no mercado exterior. Causam imensurável dano à economia, maior do que a corrupção que dizem combater.
Empresas de construção e outras da cadeia produtiva estão paralisadas, sem condições de investir, levadas ao limiar da bancarrota e obrigadas a entregar seus ativos a capitais estrangeiros, a custo muito inferior ao que realmente valem. A Operação Lava Jato depreda o Brasil, ao mesmo tempo que agrava a perda de sua credibilidade política, causada pelo golpe contra Dilma Rousseff.
O Brasil copia as políticas de austeridade adotadas sem sucesso na Europa. Executivo, Legislativo e Judiciário avançam sobre direitos sociais e trabalhistas. Quais as consequências prováveis?
As políticas de austeridade tendem, inevitavelmente, a piorar cada vez mais as condições macroeconômicas. Não há perspectiva de crescimento em 2017 e com o Brasil virtualmente estagnado, a afundar-se na recessão, o número de desempregados, que em setembro de 2016 era de, no mínimo, 12 milhões, vai voltar a crescer e baterá novo recorde no próximo ano, segundo a previsão do FMI.
Tais políticas de austeridade também provocarão inevitavelmente o recrudescimento das lutas sociais e da violência urbana, já fora de controle em São Paulo e outras cidades. Os investimentos diretos estrangeiros, decerto, não compensarão a queda dos aportes públicos. Capitais somente afluem para onde podem ter lucros. Com o ajuste fiscal que se pretende realizar, haverá forte redução do consumo e o incremento da pobreza e da miséria.
A direita voltou ao poder na Argentina, no Brasil e no Peru. Na Venezuela, o governo de Maduro está por um fio. Quais fatores explicam essa mudança do pêndulo na América do Sul?
O caso da Venezuela não é comparável ao da Argentina nem ao do Brasil, países que não tentaram estatizar até supermercados e implantar o “socialismo do século XXI”. O ex-presidente Hugo Chávez realizou extraordinárias reformas em benefício das camadas mais pobres e menos favorecidas da população.
Distribuiu fartamente a riqueza, mediante um conjunto dos mais avançados programas sociais. Iludiu-se, porém, com a perspectiva de que o preço do barril de petróleo se mantivesse alto. Nada poupou e esbanjou os dólares em nacionalização desnecessária, empresas que o Estado não tinha condições de administrar, e em atividades internacionais.
A Venezuela careceu de administração e sua economia permaneceu fundamentalmente extrativista, petroleira. Quando o preço do combustível despencou no mercado internacional, o país engolfou-se em profunda crise econômica, social e política.
A oposição conservadora, adensada por interesses alienígenas, robusteceu-se, ganhou as ruas e a maioria do Congresso. O presidente Nicolás Maduro assumiu com o país em crise e não soube gerenciar o Estado. Daí o seu governo estar por um fio.
E na Argentina?
A situação é outra. O presidente Néstor Kirchner salvou o país da catástrofe social, econômica e política à qual o neoliberalismo o levara em 2001. Retirou a Argentina do fundo do poço e impulsionou o crescimento econômico ao longo da primeira década do século XXI.
Não obstante o período de grande estabilidade e prosperidade do seu governo e o de sua mulher, Cristina Kirchner, as dificuldades com os “fundos abutres” persistiram. A desaceleração do ritmo de crescimento econômico, decorrente da queda do preço das commodities, favoreceu, diante da divisão no peronismo, a vitória do neoliberal Mauricio Macri, no segundo turno, pela estreita margem de 51,34% a 48,66% de Daniel Scioli, apoiado tibiamente por Cristina.
De qualquer modo, há uma ofensiva do capital financeiro internacional para desregulamentar as relações de trabalho, a fim de comprimir os salários e compensar a queda da taxa média de lucros.
Como interpretar a política externa adotada pelo governo Michel Temer? Melhor: há uma política?
Temer não tem propriamente uma política externa. Tenta realinhar-se, agradar aos Estados Unidos e ao capital financeiro internacional, mas, como sempre, há continuidade na mudança, tanto assim que compareceu à reunião de cúpula dos BRICS, em Goa, e assinou a declaração conjunta, não obstante parecer visivelmente constrangido. A China é o maior parceiro comercial do Brasil e continua a investir mais e mais bilhões de dólares na sua economia.
Há riscos de o conflito entre a Rússia e o Ocidente evoluir para um confronto armado, uma terceira guerra mundial?
Riscos sempre há. A Rússia não parece, contundo, desejar qualquer guerra. Sua política é claramente defensiva, diante do avanço da Otan na direção de suas fronteiras. Daí a reintegração da Criméia, que até 1954 fazia parte de seu território.
Quanto aos Estados Unidos, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, o general Joseph Francis Dunford Jr., perguntado no Senado sobre a possibilidade de estabelecer uma no-fly-zone na Síria, para defender Alepo, declarou: “Para controlarmos todo o espaço aéreo da Síria significaria entrar em guerra contra a Síria e a Rússia”. Os militares sabem, perfeitamente, que uma guerra contra a Rússia seria um jogo de soma zero. Não haveria vencedor.
Como o senhor definiria Vladimir Putin?
Putin salvou a Rússia do desastre, do colapso, conforme o próprio ex-presidente Michail Gorbachev declarou. Com lances precisos no tabuleiro da política internacional, recuperou a Rússia como superpotência mundial. É o maior, o único grande estadista das primeiras décadas do século XXI.
Seu mais recente livro se chama A Desordem Mundial. Essa desordem seria parte da transição para um mundo multipolar ou uma forma de impedi-la?
O que se vê no Oriente Médio e na África? O cenário é de guerras por procuração, massacres, terror, caos, catástrofes humanitárias. A União Europeia sofre com uma avalanche de refugiados e migrantes, que não tem muitos meios de assimilar e integrar, em meio a uma severa crise econômica.
Essas são as consequências dos esforços dos Estados Unidos para impor a full-spectrum dominance, o completo controle e domínio da terra, mar, ar e espaço. Os americanos não têm, porém, condições de ser o global cop, o gendarme global. Até 2016, gastaram perto de 4,7 trilhões de dólares nas guerras do Iraque e do Afeganistão.
Não sem razão, o conhecido economista Jeffrey D. Sachs, professor da Columbia University, escreveu que os Estados Unidos declinarão, como ocorreu com a União Soviética, nos anos 1970-1980, se não abandonarem a enganosa pretensão de império e continuarem a investir de forma desproporcional no militarismo, nas guerras do Oriente Médio e a convidar a China a uma corrida armamentista.
Como se deu o processo de mutazione dello stato que o senhor descreve no livro? Ele explicaria o fato de os Estados Nacionais terem se endividado para salvar os bancos na crise de 2008 e, posteriormente, serem punidos por esse mesmo sistema financeiro?
A mutazione dello stato foi determinada nas origens dos Estados Unidos, com a instituição da república presidencialista, acompanhou o processo de acumulação do capital e acentuou-se na fase imperialista, em que o capital financeiro desenvolveu o militarismo para integrar, mediante a política de conquista mundial, as economias mais atrasadas, pré-capitalistas e não capitalistas.
Lá foi onde primeiro surgiram, a partir da crise de 1873, as formas monopolísticas de organização empresarial: trustes, cartéis e sindicatos. E sua história sempre foi de permanente guerra, com breves interregnos, em meio a crises econômicas periódicas, que abrangeram todo o sistema internacional, como a de 2007-2008.
Uma vez que o capitalismo constituiu o único modo de produção que se expandiu, mundialmente, é um todo e não um amálgama de Estados Nacionais. E o que os EUA aspiram é instituir uma ditadura mundial do capital financeiro, dos grandes bancos concentrados em Wall Street.
A tentativa de golpe na Turquia insere-se nesse cenário de que forma?
A tentativa de golpe decorreu muito mais de contradições domésticas do que de fatores externos. É um país cujo exército tem uma tradição laica e republicana, desde que, com o desmembramento do Império Otomano, após a Primeira Guerra Mundial, o general Mustafa Kemal Atatürk aboliu o sultanato e emancipou a Turquia.
O presidente Recep Tayyip Erdoğan, eleito em 2014, aspira, segundo se supõe, restabelecer o califado, sob sua égide, com o apoio da população islâmica, que migrou para as cidades. A oposição é, porém, muito forte e o governo do presidente Erdogan enfrenta a rebelião curda, comandada pelo PKK. A instabilidade é enorme e insere a Turquia, um pivot country, no cenário da desordem mundial.
O quanto o Brexit, a saída do Reino Unido da Comunidade, e o avanço dos partidos e lideranças de extrema-direita, casos da francesa Marine Le Pen e da alemã Frauke Petry, ameaçam a existência da União Europeia?
Não vejo como o Brexit e o avanço de Marine Le Pen e Frauke Petry possam ameaçar a existência da União Europeia, apesar de todos os problemas existentes e decorrentes em larga medida da implantação da moeda única, o euro.
A Grã-Bretanha tem na União Europeia o seu maior mercado. Os vínculos econômicos, comerciais e empresariais entre a França e a Alemanha atualmente são tão estreitos que se confundem. E se assumirem o governo em qualquer dos dois países, Marine Le Pen e Frauke Petry não farão, certamente, tudo que querem e apregoam, mas o que podem.
Fonte: Carta Capital
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