quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Direito do Trabalho harmoniza relações ao priorizar a dignidade


 
 


A polêmica é interna e externa, com uma corrente dentro do TST e dos tribunais regionais (TRTs), possivelmente majoritária, contrária às propostas de flexibilização. Na principal Corte trabalhista do país, dois terços dos magistrados (18 dos 27) encaminharam ofício à presidenta do STF, Cármen Lúcia, criticando Gilmar.

Um dos signatários é o ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, no TST desde 2006. Ele considera uma “falácia” o argumento de que flexibilizar, por si só, trará crescimento e empregos. E lembra que nas bases do Direito do Trabalho e da própria Constituição estão a dignidade humana, a valorização do trabalho e a livre iniciativa. “O Direito do Trabalho é um elemento da ordem jurídica que cria uma harmonia porque dá prevalência à dignidade do trabalhador, a sua identidade como trabalhador – porque o cidadão puramente com seus direitos políticos não é capaz de realizar sua plena identidade, ele tem de trabalhar para que tenha uma existência digna”, diz o magistrado.

Para ele, o projeto de terceirização que tramita no Senado, em sua proposta original, amplia a prática sem limites e, assim, transforma o homem em mercadoria. O que contraria, inclusive, os fundamentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua constituição, de 1944.

Fala-se muito sobre um suposto protecionismo da Justiça do Trabalho, que de alguma maneira protegeria o trabalhador e prejudicaria as empresas. Como o senhor vê essa questão? O Judiciário, por sua natureza, é protecionista, quer dizer, está cumprindo o seu papel?

Veja, vamos tentar colocar as categorias cada qual em sua prateleira. A legislação trabalhista nasceu como uma legislação que surgiu e se afastou do Direito Civil, porque tinha como escopo a regulamentação de uma relação jurídica assimétrica. Não há como se estabelecer prestações comutativas desse contrato, porque não há igualdade entre empregado e empregador – e nunca haverá. Então, ela é, por sua substância, uma legislação de ordem pública, ou seja, é inderrogável e irrenunciável.

Se é inderrogável e irrenunciável, o descumprimento dessa legislação gera a atuação da Justiça do Trabalho como forma de proteger o trabalhador materialmente. Então, não é a Justiça que está protegendo os trabalhadores, a lei protege, porque protege uma relação assimétrica, de desigualdade, de subordinação. Quando você ingressa num patamar de aferição de igualdade econômica no Brasil, hoje o nosso é um dos países que tem maior índice de desigualdade social.

Como é que se pode falar que o empregador e o empregado estão em igualdade de condições? É melhor, então, revogar a legislação trabalhista e vamos deixar o Direito Civil, de onde ele veio, como um ramo anárquico àquele, porque no Direito Civil se previa uma igualdade. Eu não consigo raciocinar com essa máxima que foi colocada.

Agora, você diz que os empregadores se queixam... O problema é que eles têm a capacidade de unificar uma queixa, que os trabalhadores não têm. Porque, se nós formos aferir, o grau de descumprimento da legislação trabalhista é altíssimo. Isso não foi considerado nessa análise. E não teria nenhuma sanção ao descumprir a lei? Quando o juiz interpreta o comando da lei, que é imperativo, ele está protegendo?

Essa é a obrigação do juiz do Trabalho. O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) soltou recentemente uma estatística em que 68% das reclamações trabalhistas dizem respeito a verbas rescisórias e uma parcela salarial, ou salário-família, FGTS, seguro-desemprego ou uma prestação salarial não paga. Onde é que está o excesso de proteção, se quase 70% das ações dizem respeito a uma verba rescisória? Quer dizer, o discurso não fecha e torna-se falacioso.

Revogar o Direito do Trabalho não é o que alguns setores querem?

É exatamente isso que eles querem. Com esse discurso falacioso, só pode voltar para esse prisma. Se eu disser que a negociação coletiva vai resolver tudo... Qual a necessidade de uma norma jurídica de ordem pública se eu posso negociá-la, desde que seja o sindicato? E como é que o sindicato pode negociar se a representatividade dele é questionada, e eu não posso questionar minha representatividade, embora a Constituição diga que eu não sou obrigado a me filiar? O jogo está todo torto. Não tem como você vir com um discurso de purismo, que o sindicato representa... Alguns, sim, uma pequena parcela no Brasil tem essa representatividade, essa expressividade, mas não 80% ou 90% deles. Era preciso mudar isso tudo para que pudéssemos ter uma verdadeira legitimidade que decorreria da representatividade, e não da autoridade de uma lei.

Em um recente encontro nacional de advogados trabalhistas, a avaliação foi de que a Justiça do Trabalho vem sendo atacada por ser vista como empecilho para as reformas, a flexibilização da lei, a terceirização. O sr. também vê isso?

É preciso que nós tenhamos um marco inicial para raciocinar em torno desse tema. O marco inicial, na minha concepção, é o seguinte: estamos numa Constituição, num Estado democrático de direito. Não temos uma Constituição liberal e nem temos uma Constituição social. Essa Constituição estabeleceu como fundamento da ordem jurídica a dignidade da pessoa humana, e em seu outro inciso a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Ou seja, ela faz um equilíbrio. Eu não estou num Estado liberal, porque senão seria livre iniciativa, e não estou num Estado social porque seria exclusive a valorização do trabalho humano.

Então, o Direito do Trabalho é um elemento da ordem jurídica que cria uma harmonia porque dá prevalência à dignidade do trabalhador, a sua identidade como trabalhador – porque o cidadão puramente com seus direitos políticos não é capaz de realizar sua plena identidade, ele tem de trabalhar para que tenha uma existência digna. Aí se diz o seguinte: a Justiça do Trabalho tem obstaculizado o desenvolvimento do país, porque se flexibilizar o país terá mais condições de crescimento.

Duas falácias. Primeira falácia: a legislação trabalhista não é rígida, e sabemos que não é, posso despedir, tem denúncia vazia, tem uma série de coisas. Só tenho as garantias mínimas inscritas na Constituição, ela já sofreu inúmeras reformas. E, de outro lado, você diz que se houver flexibilização nós teremos mais emprego. Qual é a base empírica dessa informação? Zero. Nenhuma.

Não há nenhum estudo científico que diga que se houver flexibilização vamos ter mais emprego e mais garantia de emprego. Ao contrário, quando você teve um país em que havia um menor índice de desemprego e uma empregabilidade alta, com reconhecimento, nós tínhamos, primeiro, circulação de dinheiro no mercado, e com isso você tinha uma inversão econômica que possibilitava um desempenho melhor, inclusive observando mercado interno.

De outro lado, você tem uma possibilidade de que as classes sociais ascendam em razão da constituição de configurações sociais, políticas e jurídicas novas, a partir do trabalho. Agora, se eu não tenho nada, isso vai ser o melhor para a economia? Ou se eu precarizar todo mundo, colocar todo mundo ganhando salário mínimo, que é o que vai ocorrer, e todas as construções históricas dessas categorias vão desaparecer? Porque não vai sobrar nada, todo mundo vai ser terceirizado.

Nós tínhamos é de estabelecer uma legislação que trouxesse maiores garantias a esses terceirizados, e aí a reforma sindical poderia ajudar, porque se eles se integrassem num ramo de atividade teriam maior força de negociação, mas você dissolveu a categoria profissional, ela vai ficar desmembrando em não sei quantos sindicatos.

Com esse projeto que está para ser votado no Senado...

Esse projeto de terceirização rompe a lógica do Direito do Trabalho, porque diz o seguinte: o ser humano passa a ser uma mercadoria. Eu tenho uma empresa para locar ser humano, e a razão pela qual o Direito do Trabalho nasceu foi para dizer que isso não poderia acontecer. Qual a atividade da sua empresa? Locar ser humano.

Essa questão está nos princípios da OIT, não é?

Isso é o princípio básico que gerou toda a legislação trabalhista. O Código Civil falava em locação de mão de obra, que foi aí que nós surgimos. Revogaram isso e apareceu o Direito do Trabalho. Agora, o que está acontecendo? É o Direito do Trabalho voltando para o Direito Civil, com uma roupagem nova.

É um passo, ou muitos, para trás?

De muitos séculos, diria eu.

Esse ofício que os senhores encaminharam ao Supremo, a maior parte dos ministros do TST, mostra que dentro do Judiciário há uma reação contra isso, digamos majoritária?

É majoritária. Sem dúvida, no Judiciário trabalhista, há expressiva maioria no sentido da proteção do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho. Veja, ninguém está defendendo causa própria. Se alguma coisa mudar, obviamente tudo vai ser realocado, todos nós. Estamos defendendo é um ideal de um país mais justo. A nossa ideia é que não se pode viver sob a égide de uma Constituição liberal econômica. Não é análise de mercado que vai ditar o funcionamento de uma sociedade. Porque quando você parte de uma premissa de que o mercado se tornou mais importante que o Direito, então necessariamente acabou o Direito, porque o pensamento é todo econômico. Isso é o liberalismo clássico de centenas de anos atrás, e é o que estamos vivendo, incrivelmente, no século 21, o retorno à prevalência do mercado sobre o próprio Direito.

E não é só o Direito do Trabalho, que é o primeiro ponto. Depois vai ter o ambiental, tudo vai se justificar por força do desenvolvimento, então vamos acabar com tudo, desmatar tudo, acabar com os rios. Olha o resultado da Samarco aí, a importância de uma legislação de ordem pública, que preserva valores difusos. Como é que se pode imaginar uma sociedade em que nós vamos ver um retorno quase ao século 19, em que o trabalhador vai trabalhar 12 horas, sabe-se lá, tem crianças, adolescente, jovens... Isso é barbárie.

Há algumas matérias no Supremo relativas à terceirização ou ao negociado sobre o legislado. É possível evitar que elas prosperem?

Veja bem, não seria esse o papel do Judiciário. Penso eu que não deveria o Supremo avançar sobre isso. Essa é uma questão que deveria o Parlamento resolver de alguma maneira. A decisão ataca um ponto, mas não as consequências que vão decorrer dessa decisão. Tem inúmeras repercussões que não se fecham a partir da decisão judicial, que deveriam ser legislativas. A desconstrução das categorias, como é que se resolve isso, quem representa quem? O que faz com a pulverização, com a convenção coletiva, com as vigências de prazo? Tem uma série de coisas que dependem de uma reforma legislativa. Acho que o prudente seria deixar com que o Parlamento resolvesse. Bem ou mal, ele resolveria de um jeito ou de outro, e aí far-se-ia o controle de condicionalidade, ou de ilegalidade de A ou de B nas circunstâncias que se apresentarem. Agora, o risco desse ativismo é muito complexo. Por mais que haja uma boa intenção, uma necessidade, uma aparência de que é extremamente importante, mas isso é um pilar, uma coluna de um grande edifício sustentado por várias colunas. Se tirar uma, corre o risco de tudo cair.



 Fonte: rede Brasil Atual

Nenhum comentário:

Postar um comentário