A Constituição brasileira completou 28 anos nesta quarta (5), momento no qual os direitos assegurados em seu texto estão sob forte ataque. No centro das ameaças a estas garantias, está a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, apresentada por Michel Temer e que limita o crescimento dos gastos públicos por 20 anos. A nova regra fiscal mina o financiamento para políticas públicas e as inviabiliza. Altera, assim, a lógica que rege a nossa Carta, tão saudada pelo viés social e democrático.
Por Joana Rozowykwiat
No texto constitucional, está escrito que o Estado Democrático brasileiro está “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
Em um de seus artigos, a Carta estabelece que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. É dever do estado levar adiante políticas públicas e econômicas que sigam na direção da efetivação desses direitos, para que não se tornem letra morta.
A PEC 241, que pode ser votada em comissão especial na Câmara já nesta quinta (6), pretende impor um teto para os gastos públicos, que não poderão ter crescimento real por duas décadas. Caso seja aprovada, as despesas primárias (sem incluir os juros) do governo só poderão, no máximo, serem acrescidas do reajuste da inflação do ano anterior. Isso mesmo que economia deslanche, a população cresça e os governos mudem.
Para a especialista em Orçamento Público e assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Grazielle David, a PEC 241 é um “atentado” contra a Constituição. De acordo com ela, ao alterar a política fiscal, restringindo o financiamento dos direitos sociais, a medida impede a efetivação daquilo que está escrito na Carta, rompendo com seus princípios. Trata-se de colocar em xeque o arranjo constitucional de financiamento desses direitos.
Disposições transitórias x retrocesso duradouro
Do ponto de vista formal, a PEC 241 altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), para instituir o novo regime fiscal. Ou seja, utiliza-se uma disposição “transitória” para promover uma mudança estrutural bastante duradoura.
“Se a gente pensar, o ADCT nem deveria existir mais. A Constituição está fazendo 28 anos hoje. Aqueles artigos (da ADCT) existiram para um momento de transição de um cenário pós-ditadura até um período mais democrático, uma fase de adaptação. Eram orientações, na Constituição, de como fazer em um período de transição. Mas praticamente tudo ali prescrevia com cinco anos. Então como é possível que, 28 anos depois, a gente esteja falando em alterações no ADCT”, critica.
Para ela, é “inacreditável”, que o governo proponha uma alteração em algo que foi criado para ser transitório na Constituição, de modo a “mudar toda a lógica do que é essa escrito no texto propriamente dito” da Carta. “Porque se você mexe na política fiscal e no financiamento desses direitos, você inviabiliza as garantias”, defende.
“É uma coisa muito bizarra. Você tem um texto lindo, com uma série de direitos, um princípio norteador de solidariedade, e depois lá no apêndice, que não deveria nem mais existir, você vai fazer uma mudança na política fiscal como um todo, para durar 20 anos, que inviabiliza todo o texto constitucional”, reitera.
Política econômica deve garantir direitos
Como exemplo, Grazielle cita o que acontecerá com a saúde, caso seja aprovada a PEC 241. Segundo ela, apesar de, em um primeiro momento, a nova regra fiscal não ter impacto sobre os recursos da área, com o passar dos anos, as perdas irão se acumular, retirando bilhões do Orçamento, conforme tabela abaixo.
De acordo com a Constituição, a saúde “é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas”. Grazielle então destaca que as políticas econômicas têm que existir de tal forma que permitam o adequado financiamento para a garantia do direito à saúde.
“Uma vez que você elabora uma política fiscal que limita, põe um teto, ao que pode ser gasto com esses direitos, você inviabiliza o que diz o texto constitucional. E, como lá diz que a saúde é um dever do Estado, você está negando o dever do Estado de garantir essa política”, condena.
O mesmo se aplica a outras áreas. Estudos já indicam que a PEC vai reduzir em mais da metade as verbas para a assistência social, por exemplo. E, caso ela existisse desde 2006, o salário mínimo, que hoje é de R$880, seria de apenas R$550; o orçamento da educação, em vez de ter alcançado os R$103 bilhões atuais, estaria em R$31 bilhões. Ou seja, trata-se de um corte drástico nas chances de construir uma sociedade mais democrática, igualitária e justa.
O projeto do governo Temer estabelece que o teto se refere aos gastos primários de maneira geral, podendo acontecer de uma ou outra área ter aumento acima da inflação, desde que compensada por outro setor do orçamento.
Grazielle prevê, então, que, se houver o entendimento que saúde e educação podem receber mais dinheiro, em um cenário no qual os gastos com Previdência continuam crescendo ao longo dos anos, será impossível levar adiante qualquer outra política pública.
“Qual o país que vive sem nenhuma outra política pública? Como fica a questão de segurança, da habitação, da ciência e tecnologia, da agricultura familiar?”, questiona.
Ela aponta ainda que outras propostas defendidas pelo atual governo também se somam ao golpe na Constituição. “Se você fala em uma reforma da previdência e das leis trabalhistas, que é na verdade para diminuir direitos, você está atentando contra o texto constitucional também”.
Orçamento a serviço da minoria
A especialista em Orçamento Público analisa que a política de austeridade materializada na PEC 241 expressa um entendimento que fazia parte ada lógica liberal, foi resgatado com o neoliberalismo, mas hoje é rejeitado até mesmo pelo Fundo Monetário Internacional, grande entusiasta do ajuste fiscal em outros tempos.
“Um relatório recente do FMI afirma claramente que medidas de ajuste adotadas pelos países com corte de direitos não trazem benefícios sociais e econômicos. Os cortes são, na verdade, ações pró-cíclicas e não anti-cíclicas diante de uma crise fiscal. Mas, mesmo assim, alguns países de economia em desenvolvimento, como o Brasil atual, continuam tentando adotar esse tipo de política. É um retrocesso total”, condena.
Segundo ela, a visão contida na PEC é diametralmente oposta àquela que deu origem à Constituição Cidadã. “Quando a gente pensa na lógica dos direitos humanos, há uma série de princípios e um deles é de que deve haver uso máximo de recursos para financiar os direitos. Já a PEC 241 fala que o princípio norteador deve ser o superávit primário máximo (economia para pagar juros da dívida). É assustador como a gente muda esses princípios”, afirma.
Para Grazielle, trata-se de uma mudança completa na lógica de porque existe um Estado, porque existe arrecadação e porque a população paga tributos. “Deixa-se de recolher, de fazer arrecadação tributária para financiar direitos e passa a ser tudo para fazer superávit primário, garantir pagamento de juros e beneficiar um pequeno grupo, ao invés de beneficiar toda a sociedade”, encerra.
Histórico de ataques
Promulgada em 1988, após longo período de ditadura, a Constituição marcou a transição para os tempos democráticos. Considerada uma das mais avançadas do mundo, recebeu o apelido de Constituição Cidadã. De lá para cá, contudo, diversas têm sido as tentativas anular seu conteúdo.
O próprio presidente à época, José Sarney, chegou a dizer que a Carta e os direitos que ela assegurava tornavam ”ingovernável” o país, um discurso que volta e meia reaparece na cena. Sob o olhar enviesado do neoliberalismo, o Estado não teria recursos para garantir os direitos constitucionais.
Na entrevista ao Vermelho, Grazielle lembra que, em vários momentos, após a aprovação do texto constitucional, houve pressões, iniciativas ou omissões no sentido de desconstruir o que diz a Carta.
“Se você pegar o processo de regulamentação do financiamento saúde, só em 2012, com a lei complementar 141, é que houve a regulamentação de quanto cada ente federado iria colocar para financiar esse direito”, destaca. Na sequência, em 2015, foi aprovada a Emenda Constitucional 86, que puxava para baixo o valor a ser investido, agravando o quadro de subfinanciamento da saúde - o que pode piorar com a PEC 241.
Além da questão do financiamento, Grazielle ressalta outro movimento importante que sinaliza a tentativa de mudar a lógica do conteúdo da Constituição. Trata-se dos processos de terceirização da gestão dos direitos, que passam a ser administrados pelas chamadas Organizações Sociais (OSs), cada vez mais comuns nas áreas da saúde e da educação.
“É entregar para a inciativa privada a gestão e a organização da política pública. Cada uma dessas medidas vai enfraquecendo o papel do Estado e da própria Constituição na garantia de direitos. E, uma vez que se terceiriza, diminui a transparência e a participação social, vai minando a capacidade tanto do povo participar da elaboração de uma política, quanto de ter acesso a ela”, avalia Grazielle.
Segundo ela, momentos de crise como o atual, podem gerar queda significativa da arrecadação, com impacto sobre o financiamento dos direitos sociais. “Apesar disso, há todo um entendimento de que os direitos sociais não podem estar sujeitos à lógica de como se encontra a economia. As políticas públicas, tanto as sociais quanto as econômicas, têm que se organizar de tal forma quer esses direitos sejam cumpridos. Mas, infelizmente não é o que acontece”, lamenta.
Fonte: Portal Vermelho
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