Em 2012, ato de devolver dinheiro de assalto a restaurante comoveu e mudou o rumo de dois moradores de rua em SP. Ao iG, Rejaniel Silva conta como lida com a pressão da nova vida
Ter alguém para desejar ‘bom dia’, ‘boa noite’ ou ‘bom serviço’ é uma das ações mais prazerosas do dia para o maranhense Rejaniel de Jesus Silva, de 36 anos. Ex-morador de rua, Rejaniel viveu durante seis meses embaixo de viadutos ao lado de sua então mulher Sandra Regina Domingues até o dia 9 de julho de 2012 - quando se viu envolvido em um assalto a um restaurante no Tatuapé , bairro da zona leste de São Paulo. “Tive medo que me pegassem com aquele dinheiro. Poderiam me jogar na cadeia e eu acabar pagando por aquilo”, disse.
(Videorreportagem: Wanderley Preite Sobrinho, iG São Paulo)
Localizado próximo ao viaduto Carlos Ferraci, o alvo dos criminosos, o restaurante Hokkai Sushi, foi invadido por um bando, por volta das 3h30 da madrugada. O alarme do estabelecimento despertou o casal Rejaniel e Sandra, que dormia a poucos metros da cena do crime. Desconfiada, Sandra cutucou o marido após ver um saco de lixo atrás de uma árvore. Rejaniel foi então checar o que tinha dentro e encontrou dinheiro. Eram R$ 20 mil em notas de 100, 50 e 10 e moedas. “Olhamos um para o outro e pensamos: ‘Temos que devolver isso’. Não era nosso”, conta Rejaniel ao iG nove meses após a ação que foi responsável por tirá-lo das ruas.
A notícia do casal de moradores de rua que devolveu à polícia dinheiro de um assaltopercorreu e sensibilizou o País. Com a vida mudada, Rejaniel recebeu a equipe de reportagem do iG e mostrou como tem lidado com a nova realidade, não menos desafiadora do que a que encontrou nas ruas. Empregado pela empresa que ajudou, o ‘1.001 utilidades’, como ele mesmo se classifica, passou a considerar seus colegas de trabalho como a nova família. “Troquei R$ 20 mil por uma família. Tomei a decisão de não ficar com o dinheiro para ganhar tudo isso. Tive minha dignidade restaurada e agora tenho um endereço.”
Sandra Regina mora há um mês com sua família em Andarí, no Paraná. As causas da separação do casal não foram esclarecidas por Rejaniel, que relembra as ‘barras do passado’ com tristeza. Ele explicou que para comprar arroz e farinha vendia papelão e após “três ou quatro viagens” garantia R$ 6, que seria divido entre o casal. “Era muito difícil. Em dias de chuva, quase impossível. Tinha que compensar com o trabalho à noite. No dia daquele assalto, tinha uma moeda de R$ 1 no bolso”, relembrou.
Novos rumos
A atitude do casal comoveu três empresários, em especial Miguel Shoiti Kikuchi, diretor operacional dos restaurantes Hokkai Sushi. À época, Kikuchi foi chamado pelos policiais para acompanhar as investigações sobre o assalto e conheceu Rejaniel e Sandra. “Saí de casa desacreditado. Foi ainda mais difícil acreditar quando comentaram que os moradores de rua estavam ali para devolver o dinheiro. Passei a me sentir responsável em tirá-los daquela situação, por gratidão mesmo.”
Ao deixar o DP, o diretor levou o casal para sua casa, onde ficaria hospedado por pelo menos cinco dias. O acolhimento construiu uma relação familiar entre Kikuchi e Rejaniel, que passaram a assumir papéis de “pai” e “filho rebelde”, segundo eles.
Após uma semana, o casal foi colocado em um hotel da região. “Eles passaram a receber ameaças de morte e isso nos assustou”, diz Kikuchi. Como estavam com medo dos assaltantes, o melhor caminho era continuar trocando de endereço. “Recebia ligações deles dizendo que havia pessoas encarando e suspeitas. Em 20 dias, passamos por cinco hotéis diferentes”, contou. Nesse ponto, as despesas com hospedagens e alimentação já tinham superado os R$ 20 mil recuperados no mês anterior. “Definitivamente não nos preocupávamos com o custo”, diz o diretor do restaurante.
Foi quando a empresa ofereceu duas opções de recompensa ao casal: voltar a morar com os familiares - Rejaniel no Maranhão e Sandra no Paraná - ou receber qualificação profissional e compor o quadro de funcionários do grupo. Eles aceitaram o segundo prêmio. “Meu desejo não era sair daqui, só queria encontrar minha mãe”, disse Rejaniel. Seu desejo de rever dona Costinha, sua mãe adotiva, foi atendido por uma emissora de TV.
Já Sandra, que não teve a mesma sorte, ‘acompanhou’ de longe a alegria do marido. “Ela entrou em desespero, só chorava e não dormia. Decidi levá-la ao Paraná”, contou aos risos Kikuchi como se desacreditasse da própria decisão de dirigir 11h para promover o reencontro.
Descobertas
Situações como ter uma nova família e lidar com a vida de solteiro vieram acompanhadas por uma avalanche de novidades. Rejaniel descobriu o gosto pela culinária japonesa e assumiu que, antes de encontrar o Hokkai Sushi, só havia experimentado “yakissoba do cara da Paulista”. “Nossa, amo sashimi e sushi. Devoro tudo". Ele mostrou também com orgulho seu novo cartão bancário e comentou como precisa ficar atento ao acessar um caixa eletrônico.
As novidades são atraentes, mas também podem assustar. Pagar as contas de água e luz e manter a casa sozinho “não tem sido fácil”, segundo ele. Ainda mais difícil quando há um vício que passa a interferir em suas decisões nas horas mais difíceis. “Ela [Sandra] foi embora há mais ou menos um mês. E há um mês é só isso que eu faço, eu bebo”.
Embora ele não demonstre e tente desviar as atenções na empresa, com piadas e brincadeiras a todo o tempo, seus chefes e colegas já perceberam que tem sido um desafio para Rejaniel aguentar a pressão. “Se não fosse o álcool, eles estariam bem. É triste, mas não sei até que ponto poderia ajudar. Dou trabalho e condição para ele viver bem. E não ordens: tome banho, limpe sua casa, escove os dentes. Ele tem que lutar por isso”, lamentou Kikuchi.
Fim do conto de fadas
A complexidade não compõe apenas a história de Rejaniel. Assim como ele, milhares de outros moradores de rua enfrentam dificuldades no processo de reinserção na vida em sociedade. “São muitas histórias que levam uma pessoa a escolher a rua como espaço de convívio. É necessário acompanhar a pessoa dentro da possibilidade de melhoria da qualidade de vida, dentro do contexto dela. Muitos não respeitam essas ambições e desejos. É um ritmo particular”, explicou o psicólogo Joari Carvalho, que atua na política de assistência social.
A alta expectativa em torno da vida do casal, segundo ele, surgiu após um excesso de exposição na mídia. “Fez um ato de solidariedade e viu sua vida mudar de um dia para o outro”. Para o psicólogo, ao ganhar casa e trabalho, Rejaniel passou a enfrentar um julgamento moral realizado por uma sociedade que acredita em um “conto de fadas moralista”. “Não sabemos por qual motivo o casamento deles não deu certo e nem se era um relacionamento considerado convencional. A gente é educado a achar que todo mundo daria a mesma resposta para tudo e ao mesmo tempo.”
Além disso, Carvalho explicou que o fato de Rejaniel ter ganhado várias oportunidades após um ato de solidariedade aumentaria a pressão social para ter uma vida dentro da normalidade e não desapontar as pessoas que o ajudaram. “Se ele ganhou, tem que retribuir já que tudo o que tem não veio de si. E esse é o pensamento da sociedade”. Carvalho citou ainda que para passar a lutar mais por sua independência e outras ações “aprovadas pelo coletivo”, como cuidar da limpeza da casa e deixar de uma relação prejudicial com o álcool, Rejaniel deve querer. “A sobrevivência na rua é dura demais. Isso implicou novos conflitos para ele resolver. Quando? Não sabemos. São valores que construímos juntos em sociedade.”
Fonte: ultimosegundo.ig.com.br
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