terça-feira, 27 de junho de 2017

Por que as mudanças na previdência rural preocupam



 
 

















Um dos lados ocultos da reforma da previdência são as mudanças na aposentadoria dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais e seus impactos. A proposta em trâmite atualmente no Congresso Nacional propõe que a aposentadoria rural se dê mediante a contribuição previdenciária destes por pelo menos 15 (quinze) anos e com a idade mínima de 57 anos para as mulheres e 60 anos para os homens, o que mantém a atual previsão constitucional de redução de cinco anos em relação ao trabalhador urbano.

Montada sobre a falácia de que o trabalhador rural não contribuiria para um regime do qual seria beneficiário, há uma armadilha perigosa ao instituir a contribuição previdenciária formal ao trabalhador rural.

Para compreender estas questões é preciso, preliminarmente, distinguir os três tipos de trabalhadores rurais segurados pelo regime de previdência: o empregado rural, o contribuinte individual e os segurados especiais. O artigo 7º da Constituição de 1988 igualou os direitos de trabalhadores urbanos e rurais, inclusive os direitos previdenciários. Ademais, a contribuição para a previdência do empregado rural se dá nos mesmos termos do trabalhador urbano.

Do ponto de vista previdenciário, o trabalho rural eventual que presta serviços a um ou mais contratantes (diaristas, boias-frias etc.) é enquadrado como contribuinte individual. A contribuição deste de acordo com a Lei n.º 8.212/91 é de 20% sobre o salário de contribuição. A Lei Complementar n.º 123/2006 incluiu um dispositivo que faculta a esse segurado a redução da alíquota de contribuição para 11% sobre o salário mínimo, desde que renuncie ao direito à aposentadoria por tempo de contribuição.

Por fim, quando a Lei n.° 11.718/2008 instituiu um mecanismo simplificado para a contratação de trabalhadores rurais para trabalho de curta duração por empregador pessoa física, acrescentou que o segurado trabalhador rural contratado para esse tipo de serviço deve contribuir com a alíquota de 8% sobre o respectivo salário de contribuição.

“O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o pescador artesanal e o assemelhado que exerçam essas atividades individualmente ou em regime de economia familiar” foram incluídos pela Lei n.º 8.213/91 como segurados especiais da previdência social. Neste caso, sua contribuição se dá sobre o resultado da comercialização de sua produção. Pela Lei n.º 8.212/91, a contribuição destinada à Seguridade Social do segurado especial é de 2% sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção e mais 0,1% dessa receita para financiamento das prestações por acidente do trabalho. Desta forma, fica claro que é falsa a argumentação de que o trabalhador rural não contribui com a previdência.

Ainda assim, é preciso admitir que algumas estimativas apontam que a arrecadação advinda da comercialização da produção rural corresponde a algo em torno de 13% dos benefícios dos segurados especiais, caracterizando um forte subsídio que leva à segunda parte da falácia mencionada no início: a ideia da contribuição para um regime do qual seria beneficiário. Isto poderia ser válido se o sistema pensado no Brasil fosse um regime apenas de previdência social, entretanto a visão dos constituintes foi de um sistema de Seguridade Social integrando o “conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

São objetivos da seguridade social estabelecidos no texto constitucional: a universalidade da cobertura e do atendimento; a uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; a irredutibilidade do valor dos benefícios; equidade na forma de participação no custeio; a diversidade da base de financiamento; e o caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

A previdência rural, portanto, não deveria ser entendida como parte de um regime de previdência, mas sim uma política de assistência social com múltiplos impactos. Das 16 milhões de pessoas apontadas em 2011 pelo governo como em situação de pobreza extrema, 47% (7,52 milhões) estavam no campo. Levando-se em conta os dados da contagem da população do Censo Demográfico de 2010 do IBGE (2013), teríamos um percentual de 8,39% da população em situação de miséria.

Desagregando os dados do urbano e do rural, encontramos 5,27% da população urbana em situação de pobreza extrema, enquanto o mesmo índice na população rural atinge 25,27%. Sem a previdência rural este contraste seria ainda maior dado que as evidências indicam que o regime instituído pela constituição de 1988 permitiu que muitos trabalhadores rurais escapassem da linha de pobreza. Ademais, a previdência rural ajuda a conter o êxodo rural e tem efeitos multiplicadores significativos na economia de pequenos municípios, que são maioria no Brasil.

É justamente neste benefício ao “produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o pescador artesanal e o assemelhado, que exerçam essas atividades individualmente ou em regime de economia familiar” que o governo pretende mexer, e os impactos podem ser bem maiores do que se anuncia. A necessidade de contribuição formal à previdência na prática levará estes trabalhadores a situação em que se encontravam pré constituinte. Assim, as alternativas imediatas ao trabalhador que não pretende trabalhar até morrer será buscar emprego no agronegócio, que não será capaz de absorver a todos, ou abandonar o campo, o que poderá gerar um aumento no êxodo rural.

Deste modo, o agricultor familiar e o assentado da reforma agrária terão desincentivos a trabalhar em suas propriedades de forma a garantir algum tipo de aposentadoria. É importante destacar que este setor ocupa 24,3% da área agricultável, produz 70% dos alimentos consumidos e emprega 74,4% dos trabalhadores rurais. De forma cruel, a reforma da previdência poderá promover a desestruturação das cadeias ligadas à reforma agrária e à agricultura familiar em favor do agronegócio empresarial.

Deste cenário, deverá ocorrer dois desdobramentos, o mais evidente é o empobrecimento e a perda de autonomia dos trabalhadores rurais e dos municípios onde está inserida a agricultura familiar. Por um lado, os trabalhadores rurais abandonarão sua própria produção e perderão renda, por outro, aqueles que optarem por seguir com a produção própria acabarão por abrir mão da aposentadoria.

Ademais, com o êxodo rural e a diminuição da população no campo e, num médio prazo, dos beneficiários de aposentadoria rural deve impactar na renda dos pequenos municípios cuja economia depende fortemente do consumo dos aposentados rurais e seus subsequentes efeitos multiplicadores. Para além disso, a renda gerada pelas cadeias produtivas da agricultura familiar e da reforma agrária deverá diminuir nos locais onde estas têm importante peso econômico. A tendência, portanto, é de um cenário que aponta para um possível colapso econômico de diversos municípios pelo Brasil.

O outro desdobramento será o impacto na oferta de alimentos. Como já foi dito, são estas cadeias produtivas que garantem boa parte da alimentação básica consumida pela população brasileira. Sua desarticulação no médio prazo em decorrência da reforma da previdência provocará uma quebra estrutural na oferta de alimentos afetando a segurança alimentar do povo brasileiro e provocando uma inflação de alimentos.

Deste modo, cumpre resgatar a ideia de que, para além dos resultados fiscais, um governo soberano, emissor de sua própria moeda e num país de dimensões continentais como o Brasil, deve priorizar a responsabilidade econômica e social sobre a malfadada responsabilidade fiscal: emprego, inflação e bem-estar.

As mudanças na previdência rural não afetam apenas o trabalhador rural. Neste sentido, é do nosso entendimento que a reforma da previdência, para além dos seus efeitos na população urbana, promove alterações na aposentadoria rural que somente irresponsáveis e sem compromisso com o povo são capazes de defender.

*Gustavo Noronha é economista do Incra e colunista do Brasil Debate 


Fonte: Brasil Debate

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