domingo, 5 de agosto de 2018

Refugiados: A nova odisseia européia

Embora a crise migratória não esteja mais fortemente no noticiário, milhares de pessoas permanecem presas nas ilhas gregas em um estado de total incerteza.

Por Camille Colletta*

  
O exílio forçado de Ulisses, rei de Ítaca, é talvez uma das narrativas mais emblemáticas da literatura ocidental. É uma das expressões mais profundas dos sentimentos de exílio, saudade e dor causada pela impossibilidade de retorno.

Se esta epopéia reverbera tão fortemente nas mentes dos povos europeus, é talvez porque a Europa tem sido palco de grandes guerras e conflitos que fizeram do exílio uma experiência coletiva difícil de apagar da memória. No entanto, se a história de Homero ainda nos diz algo hoje, é provavelmente menos para as pessoas que vivem na Europa do que para aqueles que chegam a suas praias.

As imagens do exílio que vêm à mente hoje não são os milhares de dissidentes, judeus e combatentes da resistência fugindo nas estradas da expansão do Lebensraum alemão, do nazismo. mas sim a chegada incessante de milhares de refugiados às ilhas gregas em balsas infláveis. Pode-se também claramente imaginar as pilhas de coletes salva-vidas - que se podia até pouco tempo “visitar” perto da aldeia de Molyvos - paradoxalmente mais evocativas de uma exposição de arte contemporânea do que de um drama humano ainda em curso.

No entanto, essas imagens, reproduzindo um loop nas telas de televisão, deram lugar a um silêncio, uma expectativa de algo que nunca chega. Se antes essas ilhas eram meramente um ponto de trânsito para a chegada maciça de pessoas que pediam asilo, desde que o acordo foi assinado entre a União Européia e a Turquia, elas se tornaram lugares onde essas pessoas são “presas” num pântano processual.

A declaração foi assinada em 18 de março de 2016. Seu objetivo era claro: impedir a chegada de migrantes da Turquia à Grécia. A Turquia, que já recebe mais de três milhões de refugiados, é considerada um país seguro e a UE gastou três bilhões de euros para administrar a ajuda humanitária. Em contrapartida, a Turquia pode renegociar a sua admissão na UE e se beneficiar de um alívio nas obrigações dos cidadãos turcos que desejam viver na Europa.

O cerne do ato é que qualquer solicitante de asilo cujo pedido seja considerado inadmissível na Grécia será enviado de volta à Turquia. Assim, se os requerentes de asilo estão presos nas ilhas, é porque, se forem transferidos para o continente, não poderão mais ser devolvidos para a Turquia. Seu registro, bem como sua admissão (e o eventual retorno à Turquia daqueles que não são permitidos) deve ser feito na ilha onde chegaram de barco.

A "detenção" do asilo

As condições de vida extremamente difíceis tornam-se ainda piores pela situação de quase total incerteza: os que pedem asilo não têm controle sobre o seu futuro.

O mais difícil para alguns é não saber quanto tempo vão gastar em Moria, o principal campo de refugiados da ilha grega de Lesbos. É um “tempo perdido”, um tempo de incerteza e espera. Com efeito, os espaços legais em que os migrantes estão encalhados são espaços de incerteza, onde a informação é sempre cercada por indeterminação sobre o futuro, comparável à experiência do tempo nos espaços carcerários.

Embora os que pedem asilo não sejam “detentos” no sentido próprio, o regime de sua imobilização tem praticamente essas características. A nível legal, é comum o encontro de refugiados que não sabem que têm direito a assistência jurídica gratuita ou que, após a sua segunda recusa, têm dez dias para apresentar um recurso. As organizações jurídicas que prestam auxílio aos solicitantes de asilo estão completamente sobrecarregadas e, como a maioria delas depende de voluntários, não podem fazer nenhum acompanhamento a longo prazo de seus processos.

Alguns requerentes de asilo tiveram seus advogados mudados depois de algumas semanas ou já não sabem quem está no à frente de seu processo. Toda semana, os líderes das diferentes comunidades apontam esses problemas, dos quais as autoridades estão cientes, mas sem nenhuma mudança à vista.

Se Moria é regularmente representado em termos carcerários, é uma prisão de um tipo particular. Uma antiga base militar na ilha de Lesbos, foi transformada, em 2015, em local para receber provisoriamente pedidos de asilo. O acampamento tem capacidade para 2.300 pessoas, mas em dezembro de 2017 havia mais de 7.000 (dois terços dos quais mulheres e crianças), vindas principalmente do Iraque e da Síria, e vivendo cercados de arame farpado e dos enormes portões de metal como se vê na entrada das prisões.

Enquanto os refugiados têm o direito de andar livremente pela ilha, é quase impossível para um cidadão observar o que ocorre dentro do acampamento. Em essência, o sistema parece estar em grande parte direcionado contra esse olhar externo. A polícia está em todas as entradas e o controle de identidade ocorre sistematicamente. A entrada é conseqüentemente impossível para um mero voluntário que atua a favor daqueles recém chegados.

Quanto à imprensa ou às conhecidas organizações humanitárias, elas só têm acesso depois de solicitar autorização prévia às autoridades do campo. Essa dificuldade não tem nenhuma justificativa razoável, além da menos admirável: impedir que as condições de vida aterradoras nos campos sejam trazidas à luz. 

A própria existência desses campos, e a extensão deles dentro da União Européia, é um óbvio embaraço.

Condições de vida horríveis

Na Convenção de Genebra, a dignidade de todos os que pedem asilo deve ser respeitada. Dada a superlotação do campo (mais de 7.000 pessoas num acampamento destinado a apenas 2.300), muitas pessoas, sem espaço nos contêineres, dormem em pequenas barracas de lona. Com a chuva, essas tendas são rapidamente encharcadas. Da mesma forma, as pessoas que vivem nestas condições ficam sem proteção contra o inverno.

Todas as noites, em Moria, há confrontos entre diferentes grupos. As famílias temem por seus filhos, não conseguem dormir e não ousam sair por medo de se verem no meio de brigas. 

Os banheiros estão em um estado quase inexplicável, sem água corrente, não são limpos regularmente e certamente não há número suficiente (afinal, foram feitos para 2.300 pessoas). As mulheres têm medo de ir até eles depois de escurecer.

"Tenho medo de ser estuprada", confidenciou uma mulher de origem afegã. Não há iluminação ao redor dos banheiros e muitas vezes é perto deles que ocorrem as agressões sexuais. Há uma organização humanitária que distribui fraldas para que as mulheres não tenham que sair de suas tendas à noite. Essa medida, dificilmente digna, ou mesmo adequada reflete a improvisação da vida no campo e o sofrimento totalmente inútil que gera. Por que não aumentar o número de banheiros e chuveiros, e os guardas da estação ou a polícia ao redor das instalações sanitárias em vez de nas entradas do acampamento? Se a incerteza, os procedimentos arbitrários e o medo da deportação são as características centrais desse regime particular de detenção, são as pequenas humilhações invisíveis que criam sua experiência cotidiana.

Andando pelo acampamento, regularmente se ouve murmúrios de “Moria não é um bom lugar”. Os habitantes devem lutar por tudo: tomar água, comer, ter roupas quentes, encontrar um advogado, dormir em outro lugar que não nas tendas e depois deixar Moria para ir para as cidades vizinhas. Uma visita ao médico é uma verdadeira luta para os adultos, à medida que as filas se formam às 5 da manhã, e apenas alguns casos sérios são examinados. Não há comida suficiente e as pessoas devem, em média, fazer fila por uma hora para as refeições.

A água é escassa: só há água corrente por duas a três horas por dia. Quando vão aos banheiros, as pessoas têm que levar garrafas de água para lavar o banheiro manualmente. Ao lado dos banheiros, há enormes pilhas de garrafas de água vazias, remanescentes das condições deploráveis em que foram jogadas. A coleta de lixo é limitada, e o fedor e sujeira oprimem cada um que se aproxima do acampamento. Nos últimos meses, mais de 40% dos recém-chegados eram famílias com filhos que nem sequer tinham acesso à escola (contrariamente à Declaração dos Direitos da Criança).

"Moria está me deixando doente", relatou um requerente de asilo. “Eu vim pedir proteção internacional e estava com boa saúde. Mas depois de alguns dias comecei a me sentir mal aqui. Este acampamento é o inferno. Este acampamento me deixa louco.”

Problemas de saúde mental em Moria não resultam apenas de experiências frequentemente difíceis e traumáticas, mas também do próprio campo. A precariedade em que essas pessoas foram jogadas necessariamente tem conseqüências para sua saúde mental (estresse, fadiga, etc.) e para a saúde física (dormir no chão no frio sem roupa adequada para o inverno). O fato de não se sentirem seguras, não terem nenhuma atividade disponível e não verem um futuro para si os torna ainda mais vulneráveis.

Vulnerabilidades - o único meio de acesso ao resto da Grécia

Todos os solicitantes de asilo que chegam à Grécia devem, após se registrar na polícia, fazer uma entrevista médica na qual a pessoa pode ser considerada vulnerável. São sete os critérios de vulnerabilidade, mas essa avaliação não é satisfatória, e muitas pessoas não são vistas como vulneráveis, embora sejam.

“Esta entrevista foi muito rápida e eu não ousei falar sobre a tortura que sofri no meu país”, confidenciou um congolês. "Achei melhor esconder o fato de que eu estava doente, pois tinha medo de ser mandado de volta para casa", disse um homem do Iraque. “Fui vítima de vários estupros nos Camarões e também na Turquia, onde passei vários meses, mas como poderia contar isso na consulta, a um médico do sexo masculino?”, explicou uma jovem.

A organização Médicos Sem Fronteiras anunciou, em Lesbos, em seu último relatório sobre a saúde mental dos requerentes de asilo, que apenas um terço dos sobreviventes de violência sexual receberam a identificação como pessoas vulneráveis. A incerteza das condições das pessoas, os critérios e as abordagens contribuem para a disposição de limitar as respostas positivas.

Além disso, pode-se questionar o uso do critério de “vulnerabilidade”. As instituições, ao identificar arbitrariamente essas vulnerabilidades como “meios de alcançar o continente grego”, deram a elas uma existência no âmbito público. Aqui, novamente, “razões humanitárias” são trazidas à tona e o direito de asilo é empurrado para segundo plano. Aqueles que “sofrem” uma das sete vulnerabilidades são, portanto, “mais importantes” do que aqueles cujas vidas estão ameaçadas em seu país de origem. Para chegar ao continente europeu é indispensável mostrar que estão realmente sofrendo, e a dor deve se destacar em sua história.

O “bom” refugiado é aquele que “realmente” sofre. Eles devem, portanto, agir e expor sua história, que deve ser a mais terrível possível. Esses procedimentos, portanto, distorcem toda a interação entre os pedidos de asilo, que devem confessar seu sofrimento, e as instituições, que devem avaliar a sinceridade da confissão.

Portanto, como observa Didier Fassin, esse “reconhecimento do outro por meio do sofrimento, do infortúnio, do corpo e da sobrevivência, suplanta os direitos dos cidadãos”. Em vez dos direitos humanos, temos apenas os direitos daqueles que sofrem.

Isso atribui aos refugiados a posição de “vítimas”, de “peticionários” que devem mostrar suas feridas para ter acesso à Europa. Se os seres humanos têm uma imensa capacidade de sobrevivência e de se recuperar de eventos traumáticos, não devemos, então, indagar sobre as conseqüências da constante injunção em que os requerentes de asilo se apresentam como vítimas? Que auto-imagem homens e mulheres podem ter para implorar e mostrar cada parte de seu sofrimento como testemunho de sua sinceridade? Estamos muito longe da Convenção de Genebra e da justiça para os que pedem asilo.

A privatização da ação pública

Em última análise, uma das questões mais óbvias que se pode perguntar é sobre as causas de tal falha de ação pública. Como é possível não conseguir gerir quase 8.500 pessoas que pedem asilo? Não são mais cinco mil pessoas chegando todos os dias, mas sim uma centena por semana, em média, por alguns meses. É realmente impossível receber estes requerentes de asilo em condições dignas desse nome?

Em Moria, muitas organizações estão lutando para atender às necessidades dos que pedem asilo. Se antes eles estavam recebendo fundos da União Européia, várias ONGs tiveram que deixar a ilha ou reduzir sua ação. Dentro do acampamento, os moradores não sabem quem faz o quê. As próprias organizações são tolhidas e tentam enviar os beneficiários de sua ajuda de uma organização a outra, na esperança de encontrar o que querem em algum lugar, sempre com maior fadiga e resignação.

No final de dezembro de 2017, o Estado grego, através dos fundos que recebeu da Europa, deveria ter assumido as responsabilidades e iniciar as operações nas ilhas. Muitas das organizações hoje ainda têm presença nas ilhas e continuam a fazer o melhor que podem na ausência do Estado. Mas não cabe à Grécia e à União Europeia gerir a recepção dos requerentes de asilo?

O sistema nacional de saúde, que deve ser totalmente capaz de gerenciar os cuidados aos refugiados, está sobrecarregado e incapaz de satisfazer suas necessidades. Essa confusão e essa dificuldade em apontar quem é responsável (quem é responsável por quê?) não só tornam mais complexos os protestos e ações dos refugiados, como também dificultam o trabalho das organizações humanitárias. Cada organização transfere a culpa para a outra em uma sinfonia burocrática. Os funcionários gregos dizem que o “ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) está encarregado de tal e tal problema”, e o ACNUR diz o contrário.

Por uma política de direitos

A fim de permitir condições de vida dignas, a solução mais óbvia seria enviar todos os que pedem asilo para o continente, para que possam ter acesso a cuidados de saúde, assistência jurídica e alojamento.

Sua situação não é o resultado do acaso; a intenção oculta das instituições européias é fazer com que os refugiados entendam de maneira indireta que não são bem-vindos. Que cruzar o mar, com perigo para sua vida e a de seus filhos, não será suficiente para lhes dar uma recepção decente. Aqui, novamente, os políticos pensam que, ao atropelar o direito ao asilo, os refugiados passarão às suas famílias e amigos a mensagem para não irem à Europa.

Isso não leva em conta o fato de que seus países foram destruídos (muitos por intervenções iniciadas por países da UE), e que fugir é a única solução para sua sobrevivência. Assim, tão duras e desumanas quanto as políticas podem ser, nunca impedirão que essas famílias cheguem às terras européias.

Uma verdadeira política de acolhimento deve ser aplicada em todos os países europeus. O afluxo de requerentes de asilo não deveria ter de ser gerido apenas pela Grécia (e pela Itália); cotas significativas devem ser implementadas em todos os países. Quanto à questão de como aumentar a conscientização sobre o problema, é fundamental não esperar mais nada da compaixão das pessoas. Desde a foto do pequeno Aylan, o menino sírio de três anos, de descendência curda, cujo corpo sem vida apareceu na costa da Turquia, nada mais choca os cidadãos europeus.

Como Didier Fassin enfatizou, “a fadiga da compaixão” levou a uma indiferença em relação à situação dos que pedem asilo. Isso e a tendência mais geral das últimas décadas para traduzir políticas sociais em termos de compaixão são, na realidade, parte do problema. Como o historiador e sociólogo Gérard Noiriel especificou, “não é porque as pessoas choram à noite porque viram uma criança refugiada morta, que eles abririam suas portas no dia seguinte para os refugiados. O direito de asilo é uma noção eminentemente política que envolve a soberania do Estado”.

Para os refugiados receberem o status de vítimas, os Estados restringem o debate público à sua dimensão humanitária, em vez de torná-la uma questão de cidadania. É então a despolitização dessa questão que agora deve ser desafiada. 

*Camille Colletta é socióloga e atua em uma organização humanitária. Versão em inglês publicada em Jacobin.

Traduzido por José Carlos Ruy
Fonte: www.vermelho.org.br

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