sábado, 28 de janeiro de 2017

Alamiro Velludo: 'Pesquisas são mais importantes do que armas'



Foto: EBC
 
 




















No começo da semana, sete integrantes do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) do Ministério da Justiça entregaram um pedido de demissão coletiva ao ministro Alexandre de Moraes (Justiça). 

Eles divulgaram uma carta encaminhada ao ministro da Justiça (leia aqui a íntegra), apontando treze razões para a renúncia dos cargos, na qual destacam não apenas o “notório desprezo conferido ao Conselho” pelo governo Temer, como denunciam a “índole assumida pelo Ministério”, para o qual “precisamos de mais armas e menos pesquisas”.

Carta Maior conversou com Alamiro Velludo Salvador Netto, ex-presidente do CNPCP, professor da faculdade de Direito da USP e ex-presidente da Comissão de Direito Penal da OBA-SP, que subscreve o documento. Membro do Conselho desde 2012, ele assumiu a presidência do órgão no ano passado.

Nesta entrevista, ele detalha as motivações da renúncia, avalia a situação da segurança pública no país e denuncia o equívoco da atual orientação punitivista do Ministério da Justiça. Acompanhem: 

Há quanto tempo o sr. participava do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e quais mudanças promovidas pelo atual governo na entidade?

Alamiro Velludo Salvador Netto - Fui chamado para compor o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária pelo Ex-Ministro José Eduardo Cardoso ainda no ano de 2012. Em 2016, fui nomeado para assumir a presidência. Durante todo este tempo, e também em épocas anteriores, a relação do CNPCP com o governo não foi necessariamente harmônica. Temos vários exemplos de indisposições políticas. Isso é absolutamente normal, pois a função do CNPCP, conforme prevê a Lei de Execução Penal, é exatamente esta. 

O Colegiado destina-se a disparar críticas, buscar corrigir rumos, enfim, encontrar alguma unidade na pluralidade. Para citar um exemplo, ao longo do ano de 2016, ainda no governo da presidente Dilma Rousseff, o Conselho aprovou, instado por mais de uma centena de entidades da sociedade civil, uma minuta para um específico decreto de indulto feminino, haja vista as peculiaridades que envolvem as mulheres no cárcere. Isso não foi adiante, o governo não encampou a ideia. Digo isso para mostrar que sempre existiram divergências, porém também sempre existiu o diálogo, os ouvidos mutuamente abertos e prontos a serem convencidos pelo melhor argumento. Agora isso acabou. 

O Ministério da Justiça, no que tange à política penitenciária, passou a entender que se trata de uma questão belicista e que se insere no âmbito da segurança pública. Isso é um erro crasso. Mais ainda, não está disposto a ouvir, nem tampouco ser criticado. Quando rumores foram lançados na mídia de que alguns conselheiros pretendiam pautar uma moção de repúdio ao famigerado Programa Nacional de Segurança Pública, o Ministro imediatamente reagiu. Baixou uma Portaria, em 19 de janeiro, alterando a composição do órgão, criando mais oito vagas para sua livre indicação e, com isso, forçando uma maioria simpática à atual gestão. Isso é inadmissível. Em primeiro lugar porque é uma forma de calar o órgão. Em segundo porque mostra total incompreensão das próprias funções do CNPCP. Ele está lá exatamente para ser crítico, e não vassalo do titular da pasta.

Quais implicações, na prática, da transferência do dinheiro do Fundo Penitenciário a para a compra de armamentos?

AV - O problema do Fundo Penitenciário é bastante antigo, e precisa ser contextualizado para que possa ser entendido. O Fundo foi criado principalmente para garantir investimentos no sistema prisional. Por isso mesmo, uma das principais fontes de seu financiamento é exatamente o pagamento de multa pelos condenados. A multa, vale dizer, é uma espécie de pena criminal. Assim, é possível afirmar que o fundo é sustentado pelos condenados e se destina a oferecer melhores condições a eles próprios quando da sua inclusão nas unidades prisionais. 

Durante os anos do governo do PT, o Conselho sempre foi muito crítico ao tratamento que era conferido ao Fundo, não por causa da destinação que a ele se dava, mas exatamente pela falta de destinação. O FUNPEN por muitos e muitos anos serviu para garantir caixa ao governo, assegurar superávit primário. Agora o problema mudou de lugar. O atual governo liberou parcela razoável do Fundo, porém emprega este dinheiro com base em políticas equivocadas. 

O tratamento da questão prisional é dado sob a ótica da dimensão policial, enquanto o problema me parece muito mais social. O cárcere brasileiro é o retrato mais nítido dos excluídos e marginalizados do País. Pobres, negros, jovens, analfabetos, esse é o resumo de nossos internos. As verbas do FUNPEN, portanto, deveriam ser o motor da inclusão, e não da exclusão. O investimento deveria se destinar à construção de escolas técnicas nas unidades, melhoria do sistema de saúde dos detentos, de condições de higiene e de infraestrutura em geral. Mas o que se vê não é isso. A ideia é comprar armar, construir cadeias e aumentar o contingente de forças polícias. Tudo parece estar muito bem definido na paradigmática frase lançada pelo Ministro de que é preciso mais armas e menos pesquisas.

Qual seria a orientação correta para o enfrentamento dos motins que estão acontecendo no sistema carcerário brasileiro?

AV - O enfrentamento dos motins pressupõe a sua compreensão prévia. Ou seja, até para usar armas é preciso antes pesquisar. Não se combate sem o conhecimento acerca do opositor. Esses motins atuais apresentam uma característica muito própria, qual seja, são conflitos entre internos. Se observarmos o massacre do Carandiru em 1992, o que houve ali foi a deflagração de uma rebelião de presos com reféns que eram agentes penitenciário, portanto representativos do Estado. Posteriormente, com o ingresso da tropa de choque no pavilhão houve uma chacina do Estado contra os presos. Sempre, neste episódio, verifica-se a tensão entre o Estado, por um lado, e os custodiados, de outro. 

Agora não. Há um conflito medieval e sanguinário entre facções, entre presos. Há uma fotografia do pátio do presídio de Alcaçuz no Rio Grande do Norte que foi divulgada pela imprensa que é estarrecedora. Os amotinados estão entrincheirados em cantos opostos do pátio, com bandeiras, lanças e facões. A imagem remete a verdadeira guerra de trincheiras. O Estado aqui precisa compreender que seu papel a cumprir é outro e muito mais complexo do que ingressar na unidade com escudos e atirando para recompor a “ordem”. Ele tem que mediar uma crise da qual ele participa de forma omissiva. 

O que quero dizer com isso? Esse conflito entre facções representa o ponto mais extremo das consequências do histórico abandono do Estado no sistema prisional. Nossos presídios são terríveis, não há nada. Celas imundas, escuras, úmidas, superlotadas, fétidas. A comida cheira mal. Estive em Alcaçuz alguns anos atrás, vi cenas terríveis. Esgoto entupido, vinte homens em celas destinadas a seis, ratos, um cenário infernal. Nesse quadro, as facções aparecem como um mecanismo de união interna, de agregação. Basta dizer que o PCC nasceu dentro do presídio de Taubaté/SP. O Comando Vermelho e a Família do Norte também são produtos do sistema prisional. 

Essa política belicista que o governo atual quer implementar apenas radicaliza esta questão, pois o Estado aparece somente na faceta policial e deixa o vácuo promovido pelo abandono social nas unidades. Veja que nós demissionários do CNPCP jamais acusamos o governo ou o Ministério de ser responsável pelas ocorrências vistas no País. Isso seria leviano e incorreto. O ponto central reside na divergência quanto à solução. Se essa lógica belicista de lei e ordem realmente funcionasse, a política prisional do Estado de São Paulo teria sido um sucesso, mas não foi isso que aconteceu. 

O PCC floresceu em São Paulo, ganhou corpo e hoje, ao que dizem, tem dimensão nacional. O PCC é filho dessa lógica punitivista, que simplesmente abandona pessoas dentro do cárcere. Daí porque segurança pública e execução de pena, embora possam ter algumas identificações, são coisas diversas. A segurança pública, costumo dizer, é da muralha para fora. Da muralha para dentro devem ser realizadas políticas públicas de cunho a resgatar estes marginalizados. Do contrário, vamos continuar assistindo a esse caos.

Qual o debate que a imprensa deveria colocar em pauta quando se trata do sistema carcerário brasileiro?

AV - A mídia tem um papel importante a cumprir, principalmente o de transmitir à população a ideia de que o sistema prisional é um subproduto da sociedade como um todo. Essa é uma temática complexa. O problema é que a mídia, seja por qual razão for, prefere muitas vezes a simplificação. O jornal "O Estado de São Paulo", por exemplo, soltou um editorial a respeito de nossa renúncia coletiva do CNPCP alcunhando todos os demissionários de petistas. Isso é uma falsificação, uma tentativa clara de enganar a opinião pública e repercutir uma versão do governo. Claro que todos os membros que saíram são progressistas e comprometidos com as causas sociais do País. Muito provavelmente votaram na chapa que elegeu a Presidente Dilma e o Vice-Presidente Temer. Mas rotularem de pertencentes a este ou àquele partido é uma clara estratégia de fugir do debate das questões de fundo que foram colocadas na carta de renúncia. 

Eu, por exemplo, não sou filiado a partido nenhum, não tenho atividade político-partidária, nunca fui candidato a nada e nem ocupei cargos remunerados em qualquer governo. O único cargo público que tenho, de professor da Faculdade de Direito da USP, obtive mediante concurso e imagino, inclusive, que foi justamente este meu trabalho e vivência acadêmica que levou o ex-Ministro Jose Eduardo Cardozo a fazer a minha nomeação. 

A mídia, portanto, deveria mostrar à sociedade que nós não vamos resolver o problema prisional com soluções mágicas e imediatistas como é exemplo este Plano Nacional de Segurança Pública. O tema da execução é muito conflituoso, pois talvez seja um dos poucos que envolve praticamente todas as esferas de poder e de governos. O parlamento tem um papel decisivo, pois é ele quem elabora as leis penais que impactam o sistema prisional. A lei de drogas é um exemplo claríssimo disso. O judiciário, do mesmo modo, tem função determinante, pois seus rigores geram maiores ou menores taxas de encarceramento. Como se não bastasse, o Executivo das Unidades da Federação são os gestores do sistema prisional, a quem compete administrá-lo. É possível perceber como é difícil imaginar todos estes órgãos trabalhando em sintonia. Isso, repito mais uma vez, vai muito além de armas, coletes à prova de balas, viaturas e algemas.

Como o sr. avalia a proposta de privatização das prisões no país?

AV - A privatização dos presídios é o último ato desta ópera que descreve o abandono pelo Estado do sistema prisional. Para resumir, eu diria que nós temos aqui dois problemas, um de ordem teórica e o outro de ordem prática. Do ponto de vista teórico, o poder de punir as pessoas, de infligir castigos compete exclusivamente ao Estado, sendo indelegável. A não ser, evidentemente, que queiramos voltar para um estágio primitivo de punições e vinganças privadas. Assim como a atividade de julgar, de legislar, a prática punitiva é monopólio estatal. Não é possível transformar o sofrimento das pessoas em negócio pautado pelo fito de lucro, controlado por empresas sob uma racionalidade econômica. 

Do ponto de vista prático, todos os argumentos que buscam sustentar as privatizações não param de pé. Afirma-se muito que o Estado gasta demais com o sistema prisional. Pois bem, o custo por preso é mais oneroso para o Estado nas unidades privatizadas. Afinal, alguém precisa custear o sistema e ainda garantir o lucro para o gestor particular. Para constatar isso que digo basta comparar, por exemplo, em Minas Gerais, o custo do preso nas unidades públicas e o valor que se paga na unidade privada de Ribeirão das Neves. 

Além do mais existem outros problemas, como a alocação dos presos em unidades públicas ou privadas criando condições diferenciadas de cumprimento de penas, bem como as cláusulas contratuais que garantem taxas de ocupação mínima para garantir os investimentos e lucratividade do setor privado. Cito ainda a falta de legitimidade dos funcionários privados para constatação e apenamento de infrações disciplinares, fator que impacta significativamente na execução do condenado. O Estado precisa retomar o controle gerencial das unidades brasileiras, apresentar-se como algo presente, apto a oferecer oportunidades. No âmbito prisional precisamos de mais Estado, e não menos.

Qual a principal mudança que o sr. destacaria em relação à questão da Segurança Pública?

AV - A política do Ministério da Justiça atual, e confesso que desconheço qual o grau de envolvimento direto nisso do Presidente da República, recupera aquela velha fórmula punitivista. Tudo começa com um problema básico. Eu particularmente entendo que dentre as múltiplas causas da criminalidade, a principal delas deriva das condições estruturais do País. Essa é a razão, por exemplo, dos altíssimos números de crimes patrimoniais que temos se compararmos o Brasil com países menos desiguais do ponto de vista socioeconômico. Essa minha premissa não descarta, em absoluto, a necessidade de investimentos em segurança, mas conduz à percepção de que isto tem um efeito apenas parcial, limitado na solução do problema. 

O mesmo se diz quanto ao recrudescimento punitivo. Na medida em que a lei nada altera a condição real de vida das pessoas, ela quase não tem efeito sobre a criminalidade. Exemplo disso é nossa lei de crimes hediondos de 1990. De lá para cá, em que pese o extremo rigor, a criminalidade apenas aumentou. Porém, e pelo que percebo, a premissa do governo é outra, totalmente oposta. Isola a causa da criminalidade num ato exclusivo de vontade do criminoso, o qual escolheu o caminho do mal ao invés do bem. Isso não foge do velho voluntarismo que sempre pautou pensamentos mais conservadores. 

O problema é que este pensamento é pueril, reducionista. Entende que os motins prisionais ocorrem porque os presos simplesmente querem, são baderneiros, insurretos. Em nenhum momento reflete sobre as circunstâncias e os motivos profundos que conduzem a estas situações. Por isso, a solução fica aparentemente fácil, já que, se tudo se resume à deliberação pessoal e à vontade do cidadão, basta aumentar penas, incrementar a vigilância e o efetivo policial, comprar armar e equipamentos. Elege-se o preso como inimigo, deflagra-se a guerra com o chamado das forças armadas e tudo passa a ser um problema marcial. A questão, contudo, é que vivemos em uma sociedade civil democrática, e isso envolve complexidades. Para tanto, insisto, continuo pensando que pesquisas são mais importantes do que armas. 


 Fonte: RBA

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