Série sobre autismo, que inicia hoje em “AN”, vai revelar um pouco deste universo
Luiza Martin
Às vezes, Luiz Fernando Baungarten emerge do mergulho em si mesmo e estende o braço. O menino fica delicado, pousando os dedos magoados sobre a incredulidade de outras mãos. Aos dez anos, ele apresenta o Transtorno do Espectro Autista (TEA). As características clássicas do autismo fazem nele um acento grave. Há dias em que ele não fala. Os olhos se perdem. Para encontrar um lugar de maior compreensão, afamília decidiu quebrar os vínculos com a escola regular. Luiz começou nesta semana o atendimento diário na Associação de Amigos do Autista (AMA), emJoinville.
Ele já frequentava a AMA nas segundas e quartas-feiras pela manhã e, de tarde, cursava o quinto ano do ensino regular. Por acreditar que na escola ele não aprendia, a mãe Rosemeri Baungarten, 38 anos, optou pelo tratamento intensivo na associação. Ela sabe que o filho precisa de acompanhamento diferenciado.
Rosemeri tenta cortar os cabelos da clientela na vizinhança, no bairro Jativoca, mas Luiz precisa de toda atenção que ela tem para dar. Fazer com que ele vá ao banheiro sozinho é um desafio, assim como construir caminhos para que ele saia do próprio mundo.
— Ele está muito parado — diz Rose, enquanto pensa no filho deitado no quarto — Só quer ficar na cama, enrolado, né? É sempre uma fase. Às vezes, quer brincar na rua, mas do jeito dele. Mas há dias em que só sai da cama quando a fome é maior do que ele.
Quem convive com Luiz sabe bem o que Rose quer dizer. “Panquica” é o apelido de Francisca Nascimento, professora de Luiz na AMA. Quando quer, ele a chama de “Panquica”. Com ela, o menino passa todas as manhãs. Os dois já convivem há três anos e ela é uma das únicas que sabem lidar com o jeito dele.
— Há dias em que ele faz todos os exercícios. Mas nem sempre aceita bem — diz.
Assim como o arco-íris que parte a luz em sete cores, o mundo do transtorno do espectro autista ganha os tons infinitos da paleta de azul. Conhecido popularmente como autismo, o tema ganha uma série de três reportagens em “AN” a partir de hoje, data em que é celebrado o Dia Mundial do Autismo.
Família protege Luiz dele mesmo
Seja na recreação, na mesa de tarefa ou durante o almoço, Luiz senta e puxa a mesa bem para perto de si. Fica ensimesmado, passeando com os olhos, batendo as mãos contra o tampo, movendo os dedos bem rápido como quem toca uma flauta de uma nota só. Não raro, alguém precisa protegê-lo dele mesmo.
Um arco de espuma envolve a testa do menino, porque o primeiro ímpeto de contato que ele tem é bater com a cabeça nos objetos. E às vezes pega coisas e cutuca a própria cabeça. A fralda na boca é outro tipo de mecanismo que ajuda a impedir os gritos constantes, que acabam agravando a irritação e agressividade do próprio menino.
Luiz se sente diferente. Pode se machucar, mas a dor que impede o gesto dói nos outros. Para que o filho deixe os gestos estereotipados e controle a ansiedade que o faz agressivo, a mãe, Rosemeri, quer repetir o método de aprendizado da AMA na casa em que mora com o marido e mais um filho, de três anos — mais ou menos a idade em que o autismo foi descoberto em Luiz. O pai da família Baungarten é pedreiro. Eles constroem a casa aos poucos, com a sobra do pouco que ganham.
Eles fazem de tudo para impedir que Luiz quebre os próprios dedos. Um dia, ele juntou as mãos, entrelaçando polegares, indicadores, anelares e torceu a ponto de quebrar as falanges (ossos dos dedos). Como o menino não fala sobre a própria dor, os pais optaram por não fazer uma cirurgia e manter os movimentos dos dedos de Luiz, mesmo que isso signifique conviver com uma deformação causada pela calcificação desalinhada dos ossos quebrados.
Mundos em desalinho
Ao emergir do próprio mundo, Luís toca a lente da câmera fotográfica
O celular toca em assovio. É mensagem que sai do bolso em forma de som. Ela chega antes da surpresa da professora da Associação de Amigos do Autista (AMA), Francisca Nascimento, que assiste a Luiz Baungarten imitando o som do "fi-fi-fi-fi-fu". Quando menos se espera, os mundos em desalinho se encontram. O primeiro descompasso pelo qual passa alguém que tem o transtorno autista é o de não ter sua diferença reconhecida.
O diagnóstico do autismo não é feito com auxílio de exames. É preciso um trabalho de observação clínica. O neurologista do Núcleo de Assistência Integral ao Paciente Especial (Naipe), Fábio Agertt, deixa claro que autismo não é doença. Trata-se de um transtorno nada fácil de descobrir.
— O diagnóstico é muito difícil, pois não há um exame específico. Muitas vezes, é um diagnóstico multidisciplinar, pois pode necessitar do trabalho de pediatra, neurologista, psiquiatra, psicólogo — explica o médico.
O transtorno autista compromete o que Fábio chama de "três grandes áreas": dificuldade de interação; dificuldade de comunicação verbal e não verbal; e comportamentos repetitivos. Essas características podem ser sutis ou acentuadas, como no caso do menino Luiz, que apresenta o autismo grave. Elas formam um espectro.
— Espectro quer dizer vários graus das mesmas características. Como o espectro da luz, que possui todas as cores do arco-íris, existem autistas com deficiência mental até autistas chamados de alto funcionamento, que podem ser capazes de perceber detalhes ou memorizar dados que as outras pessoas não conseguem facilmente - esclarece o médico.
A AMA é uma das entidades aptas a diagnosticar o autismo e indicar o grau de comprometimento intelectual de cada criança. A terapeuta ocupacional Andréia Bitencourt trabalha no processo de avaliação, que usa a Escala Cars. Poucos conhecem como funciona essa escala, mas uma maneira fácil de identificar a intensidade do transtorno é se perguntar como a criança está na escola regular.
Para Andréia, em casos graves como o de Luiz, atendido pela AMA, a escola não tem efeito. Os que apresentam autismo moderado frequentam as aulas regulares, mas têm dificuldade de aprendizado. E os que têm o transtorno leve se isolam, mas aprendem.
Um menino como Luiz quer fugir dos outros, do mundo e de si mesmo.
— Às vezes, ele só quer fugir. Pula a cerca de casa, se corta todo no arame — descreve a mãe do menino, que só faz correr atrás dele na fase dos disparos em fuga.
O autista cria seu próprio mundo. Para ele, o resto é caos e desalinho.
— Quando falamos que o autista tem um mundo próprio, muitos pensam que não há acesso. Quem tem que mostrar caminhos para este acesso somos nós — diz Andréia, que procura conectar esses universos.
Fonte: http://anoticia.clicrbs.com.br/
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