terça-feira, 11 de julho de 2017

Entrevista de Dráuzio Varella traz reflexões sobre cadeias femininas


 
 


Em entrevista cedida ao jornal El País, Dráuzio afirma: “o único lugar em que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia”. “As mulheres são reprimidas desde que nascem: a menina de dois anos de idade senta com a perna aberta e a mãe diz ‘fecha a perna’. Essa repressão ocorre o tempo inteiro. Comportamentos que são aceitos e naturalizados para um homem são execrados para mulheres. E no presídio, sem os homens, não existe essa repressão social. Isso faz com que elas tenham o comportamento social que desejarem ter”. 

Segundo o médico, a homossexualidade dentro do presidio é algo muito comum e visto com normalidade. “O comportamento homossexual entre as presas é muito mais abrangente do que aparenta no início. Isso leva tempo para perceber. Porque essas relações femininas são mais sutis. Na cadeia de homens você percebe que alguns presos são notadamente homossexuais. Mesmo que não sejam travestis, são homossexuais, andam com outro homem que você sabe que é o marido dele. Na cadeia feminina não. Entre elas as relações adquirem uma outra dinâmica. Um número muito grande de presas tem comportamento homossexual, é a maioria esmagadora! Gira em torno de 80%, talvez até mais”. 

O médico ainda fala sobre os diferentes perfis homossexuais dentro do presidio; segundo ele, aquelas que têm aparência masculina, que representam cerca de 15% das presas, são denominadas pelas outras como “sapatões”: “Na rua é uma palavra pejorativa. Na cadeia não. Elas falam assim: ‘Sou casada com um sapatão’, com o maior respeito”.

Sobre a diferença de lógica dentro o presídio masculino e feminino Dráuzio fala sobre a melhor aceitação da homossexualidade pelas mulheres: “o homossexual ou a travesti no presídio masculino não pode nada. Não pode distribuir comida, não pode brigar com outro, não pode gritar com malandro...não pode enfrentar jamais. Na detenção morria gente quando acontecia isso. Já no feminino tudo é visto com naturalidade. ‘Minha mulher’, elas falam. ‘Sou casada com fulana’, ‘meu amor foi para o regime semiaberto, estou sozinha, estou triste’. E as guardas, a diretoria, todo mundo respeita, ninguém cria caso”. 

Quando questionado sobre o aumento do número de mulheres presas, o autor argumenta que após a conquista, os direitos pelas mulheres não foram distribuídos igualmente: nas classes mais pobres, apesar da melhora, as trabalhadoras não se beneficiaram tanto da evolução econômica e social. Dráuzio dá como exemplo a iniciação sexual precoce e a gravidez na adolescência. “A menina que tem filho aos 14 anos faz o que? Para de estudar. 75% delas param, porque não tem com quem deixar a criança. E ao parar de estudar ela comprometeu o futuro dela e da criança também”. Esses fatores, somados à baixa remuneração, faz com que a entrada no mundo do crime se torne fácil, especialmente no tráfico, maior motivo das penas. Quanto ao aborto, o médico conta que na prisão (talvez como reflexo social) as que abortam são reprimidas e segregadas. Para as outras presas, quem pratica o aborto “mata criancinhas”. 

Dráuzio ainda lembra a questão da solidão, já que depois que uma mulher é presa, dificilmente recebe visita de familiares ou companheiros: ela fica malvista, abandonada. A maioria delas tem filhos, e devido ao fato de que as mulheres geralmente são responsáveis (e sobrecarregadas) pelas tarefas familiares, muitas ficam angustiadas com o paradeiro dos filhos sem seus cuidados e sentem culpa pela separação de irmãos, por exemplo. “O homem quando está preso pode até estar preocupado com os filhos dele - alguns nem aí, né? Mas ele sabe que tem uma mulher cuidando das crianças: uma irmã, uma tia, a mãe..., mas gravidez indesejada é problema para a mulher, não para os homens, porque eles simplesmente abandonam. A mulher vai para a cadeia e perde o controle da família. Ela sabe que as crianças vão ficar desprotegidas: as pessoas abusam de criança com a mãe presa. E os filhos muitas vezes são espalhados”. 

O médico aponta o machismo evidente da sociedade refletido nessa situação: quando um homem é preso com uma pena longa, a mulher não pode abandoná-lo e deve fazer visita íntima toda semana; mas quando é a mulher quem vai presa, o homem simplesmente desaparece. 

Ainda às desigualdades por conta do gênero, Dráuzio conta o que mais o comoveu ouvindo as mulheres dentro do presídio: “no Brasil 100% das mulheres sofreram algum tipo de abuso sexual. É um cara que põe a mão na perna, fala um absurdo, aproveita o aperto do ônibus... E isso independe de classe social. Mas é lógico que é pior nas classes sociais mais baixas. E grande parte dos estupros são cometidos por familiares. É o avô, padrasto, vizinho, namorado da mãe... Estupram crianças de seis anos. Imagina que futuro, o que pode acontecer com uma criança que passou por uma coisa dessas...essas histórias são tão comuns...”.

A entrevista torna inevitável a reflexão sobre as condições dentro de uma penitenciária feminina. Uma mulher necessita por direito de certos cuidados ao ser presa, relacionados a maternidade, menstruação e cuidados específicos com a saúde. 

São comuns os casos em que a mulher é levada tardiamente para o hospital ou posto de saúde, mesmo que já tenha entrado em trabalho de parto; além disso, as presas muitas vezes passam pelo processo algemadas. A mãe tem o direito de amamentar o bebê até os seis meses de idade; contudo, crianças ficam junto com as mães em celas insalubres. Após a publicação de outro livro que trata do assunto em 2015, Presos que Menstruam, da jornalista Nana Queiroz, veio à tona a falta de produtos higiênicos fornecidos às detentas, como absorventes, por exemplo. 

Dráuzio conta do problema de saúde mais frequente na penitenciária feminina: a obesidade. “Lá elas são sedentárias e tem uma dieta rica em carboidratos. Elas ganham peso e ficam hipertensas e diabéticas. Isso é muito comum, assim como a dor nas costas e problemas ortopédicos provocados pelo excesso de peso”. 

A entrevista permite uma reflexão assombrosa sobre o sistema carcerário brasileiro e a prisão dentro de seu contexto social. Relembra uma ideia esquecida pela sociedade ao olhar para os presídios, especialmente os femininos. Essas mulheres continuam tendo seus direitos à dignidade: “elas entraram por esse caminho do crime por alguma lógica delas. E independentemente do que fizeram, elas não perdem sua condição humana”.






Do Portal Vermelho 


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