sábado, 25 de junho de 2016

Questão agrária e a conjuntura brasileira


Arame_Farpado
Esse texto é um esforço, a pedido da Coordenação Nacional da Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), de breve contribuição para reflexão sobre a questão agrária no Brasil nos dias atuais. Não é um exercício fácil, vide a complexidade do tema e inúmeros estudos e debates a respeito.

questão agrária se refere a uma área de conhecimento dedicada ao estudo e reflexão acerca do uso, posse e propriedade da terra, e em termos mais gerais, sobre a forma de organização socioeconômica do meio rural de uma dada sociedade. No passado a abordagem da questão agrária se pautava no papel da agricultura para o desenvolvimento das forças produtivas no modo de produção capitalista. Ou seja, o quanto a concentração fundiária era um obstáculo para tal desenvolvimento, constituindo o que se denominava um problema agrário. Em boa medida essa chave de interpretação marcou intensas disputas teóricas e políticas no Brasil entre os anos 1950 até o início da ditadura militar[1], em que o atraso tecnológico das atividades agropecuárias era um elemento central das discussões.
Do período colonial até o golpe de 1964 o Brasil assistiu à consolidação de um regime de uso, posse e propriedade da terra marcado pelo predomínio de unidades de grande extensão, com uso abundante de mão de obra, voltada para o mercado externo. As mudanças da sociedade brasileira também fizeram emergir, em contraposição a tal realidade, forças do/no mundo do trabalho rural que defendiam a Reforma Agrária, uma legislação trabalhista e regulamentação do acesso temporário às terras. Os governos militares executaram a chamada modernização conservadora da agricultura, onde se promoveu, entre outras, mudanças da base técnica de produção agrícola, de modo a atender objetivos de industrialização da sociedade brasileira sem diminuir a concentração da propriedade da terra e até intensificando-a. O fato é que nesse processo de modernização o setor agropecuário brasileiro absorveu enorme volume de crédito agrícola (recursos públicos), incorporou novos insumos ao processo produtivo, tecnificou e mecanizou a produção e integrou-se aos modernos circuitos de comercialização, gerando uma integração tamanha das atividades que envolvem o agro que se passou a se falar de complexo ou sistema no campo (Complexos Agroindustriais). A modernização também alterou a representação política do campo com a diversificação de organização e interesses das classes e grupos dominantes no campo. Outra importante consequência dessa modernização, propositalmente negligenciada pelos setores patronais, são seus efeitos perversos: aumento da concentração da propriedade, aumento da desigualdade de renda, êxodo rural, aumento da exploração da força de trabalho e da auto-exploração nas pequenas propriedades, degradação ambiental.
O modo de produção capitalista vem intensificando no planeta os problemas ambientais e trabalhistas, inclusive promovendo uma ofensiva brutal ao Estado de Bem-Estar Social, como se pode ver em diversos países europeus. É nessa realidade que se observa no Brasil (não só aqui) uma reconfiguração da questão agrária onde a disputa pelo monopólio de recursos naturais e o ataque aos direitos trabalhistas passam a produzir embates tão ou mais intensos nas sociedades nacionais, do que os em torno da propriedade fundiária. Reflexos atuais disso foram a disputa a respeito do Código Florestal e a tentativa em curso de regulamentação da PEC do trabalho escravo de forma a torna-la mais aceitável/flexível em termos legais.
Outro aspecto importante das disputas atuais que dizem respeito à questão agrária brasileira é o movimento político-ideológico das classes dominantes do campo brasileiro a partir do denominadoagronegócio. Ou seja, o termo é uma estratégia de construção de uma identidade organizadora da multiplicidade de atores, ainda que o termo também seja usado para nominar atividades e agentes ligados à agricultura[2]. Hoje com amplo uso na academia, nas instituições e órgãos estatais e nos debates políticos, o termo busca simbolicamente isolar práticas ambientais, trabalhistas e produtivas percebidas negativamente na sociedade como algo de setores “atrasados” e não pertencentes ao agronegócio.
Concluindo esses breves apontamentos a questão agrária brasileira no século XXI guarda continuidades e novas questões onde se destaca a permanente vitalidade da questão por mais que gente de direita e de esquerda diga que acabou (profecia repetida há décadas sem se efetivar). Além da continuidade da demanda por democratização da propriedade da terra, temas como preservação ambiental, alimentos saudáveis, respeito e ampliação de direitos trabalhistas compõem aspectos contemporâneos.
Os governos Lula e Dilma trataram a questão agrária brasileira sob orientação da estratégia de conciliação de classes (estamos vendo no que dá). Buscaram conciliar investimentos e políticas que fortalecessem tanto a agricultura exportadora de commodities quanto a agricultura em pequenas e médias unidades produtivas. Isso foi traduzido, inclusive no discurso governamental e partidário, como o governo que apoia o “agronegócio” e a “agricultura familiar”.
Não caberá aqui um balanço do período dos governos Lula e Dilma para o setor agrícola e agrário, mas duas observações. A primeira é que ocorreram iniciativas importantes e positivas como a ampliação e diversificação das linhas do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar/PRONAF, criado em 1996 teve seus recursos ampliados e avanços em seu desenho; a implementação do Programa 1 Milhão de Cisternas Rurais (2003); o Programa de Aquisição de Alimentos/PAA (2003); o Programa Nacional dos Territórios Rurais/PRONAT (2004), o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural/PNDTR (2004), o Programa Organização Produtiva de Mulheres Rurais (2008), o Programa Territórios da Cidadania (2008), a ampliação para o fornecimento pela agricultura familiar do Programa Nacional de Alimentação Escolar, restrições a estrangirização das terras brasileiras (sob fiscalização do MDA)[3], entre outros. Outra ação importante é a visibilidade da diversidade de populações do campo e segmentos como mulheres, jovens, povos e comunidades tradicionais, em especial os quilombolas, antes invisíveis para as políticas públicas. Mencionem-se também a institucionalização de espaço próprio de participação como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) e do engajamento decisivo na atuação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
No entanto, e aí é a segunda observação, predominou nos governos Lula e Dilma a agricultura exportadora monocultora em escala como referência de eficiência somada à demanda governamental por superávit comercial e a interpretação da reforma agrária não mais como uma necessidade histórica. Foram governos que visaram reconhecer direitos por políticas públicas da agricultura familiar e camponesa, porem sempre de forma subordinada ou supostamente não ameaçadora aos interesses do empresariado rural e agroindustrial. O PAC máquinas, a baixa priorização na efetivação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), o retorno da concentração dos créditos do Pronaf em termos regionais e de renda, além de outros aspectos, demonstram uma orientação majoritária de governo próxima ao ideário damodernização da agricultura e não de um desenvolvimento rural sustentável.  A versão mais recente dessa tese se traduz na orientação de governo em se promover uma classe média rural no País e o total abandono da reforma agrária, até mesmo como política social.
Apesar da linha conciliadora dos governos Lula e Dilma, e a intocabilidade dos interesses estruturais das classes dominantes do campo brasileiro, o que se observa é que esses grupos sociais são aliados incondicionais do golpe parlamentar, midiático, empresarial em curso. A única liderança do setor que não aderiu foi Kátia Abreu, em que pese não discordar do programa do golpe. Romero Jucá e Ronaldo Caiado são representantes explícitos de um patronato rural violento e reacionário. Mas estão juntos aqueles que supostamente seriam “modernos” como o rei da soja Blairo Maggi (que virou ministro do governo interino Temer) e o ex-ministro Roberto Rodrigues.
Nessa perspectiva o programa do golpe para o setor agrícola e agrário passa por romper com a estratégia de conciliação e buscar no máximo a cooptação de setores populares. Na escassez de recursos o foco deverá ser a agricultura empresarial produtora de commodities, abertura irrestrita a estrangeirização terras brasileiras[4] e desmonte de programas voltados para a agricultura familiar como PAA, PNAE, Ater, Crédito Fundiário. Como dizem, não há espaço para demagogia e populismo. O tratamento da enorme concentração da estrutura fundiária brasileira tende a ser a repressão aos movimentos de luta por terra e a volta de amplas negociatas no Incra que atendam aos interesses dos proprietários e de movimentos oportunistas e corruptos como o liderado por José Rainha (Frente de Libertação Nacional – FLN). Regularizações de terras quilombolas e indígenas devem sofrer enorme retrocesso caso o governo golpista se concretize.

* Olavo Carneiro é mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade; e  é doutora em Antropologia e professora da UFRRJ.
Fonte: www.pagina13.org.br/

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